São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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DO LADO DE DENTRO
Agressões e acertos marcam vida na Febem

da Reportagem Local

"Como é seu nome, ladrão? De onde você vem? Então, bem-vindo ao inferno. Aqui é o seguinte: sim senhor, não senhor e mão para trás. Se você desrespeitar, vai tomar um trem."
Essa é, segundo menores, a recepção de quem chega à Febem. "Trem significa couro, é ser arrastado, é surra", diz F. 18, que passou pela instituição nove vezes por assaltos na praça da Sé.
A Folha entrevistou seis ex-internos. Em 12 horas de gravação, eles narram em detalhes como é a rotina da instituição, onde, dizem, uma arma custa R$ 5.000, cigarros de maconha circulam de graça, e a autoridade muitas vezes é exercida por agressões e castigos.

AS BANCAS -
Ao chegar à Febem, o menor tem que "colar numa banca" -integrar uma quadrilha. É assim que a Febem se organiza. Quanto mais numerosa, mais poderosa é a banca.
"Minha banca na Imigrantes tinha uns 250 que eu comandava. A gente trabalhava as "naifes" (facas) junto, sentava no pátio, dividia o "jumbo" (alimentos e cigarros levados por familiares), planejava as rebeliões, fugia e se defendia", diz Júnior, 19, sete passagens pela fundação por roubo.
Como ele, os líderes das bancas são os chamados "apetitosos". "Eu não podia ficar parado, tinha que estar roubando, matando. Então lá dentro, eu agitava. Capotava monitor. Queria fugir."

AS AGRESSÕES -
Confrontos entre monitores e menores dominam os relatos dos adolescentes. Eles narram a convivência como uma guerra. "Você já está revoltado. Aí o monitor corta a brasa (o cigarro), desce a madeira. Você fica mais revoltado e vai para cima mesmo", diz J., 17, internado duas vezes por roubo e tráfico.
Os seis adolescentes perderam a conta de quantas vezes apanharam. As surras, dizem, são dadas nos quartos ou sob a água gelada. A posição, todos descrevem: colam o "coco" (cabeça) na parede e abrem as pernas. A pancada vem do "chico doce" -pé de mesa, de cadeira ou cabos de enxadas.

OS MOTIVOS -
De acordo com os adolescentes, "madeirada não tem motivo", vale a vontade do monitor. "Se você conversar quando está vendo televisão, é arrastado. Tem que ficar sentado. Nem dormir pode, senão eles pegam água gelada e jogam em você. E além de pegar água gelada, ainda dão bica, tapão", narra R., 19, uma passagem por roubo.
Segundo os ex-internos, a religião é também um argumento do couro. "Eles dizem: "Aí, mano,está querendo se esconder atrás da Bíblia? Quer enganar quem? Você é um falso profeta'", diz J.

A GUERRA DE NERVOS -
Na guerra de guerrilhas, valem as provocações. "Tem uns monitores que instigam: "Quem é o bam-bam-bam, o ladrão que tem coragem de vir para cima de mim?". Às vezes eles ficam com a garrafa de café na mão, e a gente não sei há quanto tempo sem tomar café: "Café, ladrão? Quer café não rouba mais"."

A HIERARQUIA -
As regras não são as mesmas em todas as unidades. Em algumas, dominadas pelas bancas de homicidas e latrocidas, as ordens vêm dos meninos. "Nessas, pode tudo. Pode acordar na hora que quiser, deitar e dormir no pátio", diz J., que acaba de sair de uma delas.

AS ARMAS -
Contra o "chico doce", os menores fazem as "naifes", facas produzidas com pedaços de marmitex, grades arrancadas, madeira das oficinas.
As facas não são as únicas armas. Lá de dentro é possível comprar um revólver, por preço que varia de R$ 5.000 a R$ 15 mil. "Isso depende do monitor, da situação dele, do cara que está pedindo, do tipo da arma", diz I., que já participou de negociações.

AS DROGAS -
A maconha é a droga dos pavilhões. "É o meio de você esquecer. Se tem droga, tem alegria", diz I. Nas unidades onde ainda vigoram as normas da casa, ela chega pelas visitas -amigos traficantes, namoradas e até familiares que trazem cigarros já prontos, mergulhados em frascos de desodorante, escondidos em pacotes de bolachas, embutidos em solas de sapatos. "Além disso, a favela joga de estilingue para dentro. Cai na UE-16, por isso até cortaram as árvores lá", revela F.

AS FUGAS -
A fuga também é mercadoria na Febem. "Quem não tem nada deve fugir no peito. Quem pode pagar combina de ir ao PS ou ao fórum", diz Júnior.
O preço é proporcional ao número de foragidos. "Soltar no caminho do fórum e simular um resgate sai por uns R$ 3.000. É mais barato do que pôr arma para dentro, porque foge menos gente e o risco é menor", diz I.

AS REBELIÕES -
"Tem rebelião porque eles tesouram a televisão, porque eles dão um sabonete para todo mundo, porque tem que dividir a toalha, porque eles cortam a brasa, porque eles batem nos manos", diz C.
"Às vezes, eles tesouram o pátio, e a gente fica o dia inteiro lá dentro, sentado, sem fumar, sem assistir televisão. Isso se não mandarem ficar de cabeça baixa. Aí o que acontece? Vira rebelião. Não tem como. O único papo é fugir, fugir, fugir. Você não tem nada para ocupar a mente."
Os motins são combinados entre as unidades quando os menores se encontram no pátio, nas oficinas, no campo de futebol.
"Eu dava a minha esperteza para fazer rebelião. Bipava (mandava avisar) os manos da outra ala para eles prepararem as "naifes" porque a gente ia levantar a casa tal dia e tal hora", diz Júnior.

O ÓCIO -
Em algumas unidades não há pátio para todos. Era assim na Imigrantes. "De manhã era a ala B e, à tarde, a ala C. Quando a ala B estava no pátio, a ala C tinha que ficar dentro do barraco. Era só uma televisãozinha, e você tinha que ficar formado, curvado, até dar o horário do almoço assistindo Xuxa. A manhã inteira sentado. Não podia falar um "a"", diz Júnior.

A BRASA -
O cigarro é moeda de troca. Trinta maços de Marlboro pagam uma sessão de filme pornô ou um tênis Nike. Um maço paga um pacote de bolachas.
Nas unidades onde valem as regras da casa, a brasa é um instrumento de controle e um símbolo de autoridade. "Se não fizer silêncio, o monitor não acende. Porque a humilhação é a seguinte: só eles têm o isqueiro. Tem que fazer silêncio total. Aí tem que esperar uns 20 minutos para eles liberarem a brasa. Ascendem um que passa para o outro, passa para o outro", diz C.

O SEXO -
Camisinhas e visitas íntimas não existem na Febem. Mas são comuns as relações sexuais. Os chefes das bancas dão as ordens. Novatos, "jacks" (estupradores) e "vacilões em geral" são as vítimas preferenciais. Lavam as roupas dos outros internos e são obrigados a prestar favores sexuais.
"O cara chega e fala: "O mano, é o seguinte, hoje à noite você vai com a minha cara". Não tem jeito. Se não for, toma "lixa" (surra dos outros internos). Muitos viram mulherzinha", diz F.


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