São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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DIETA DE RISCO

Pacientes buscam ganho de peso para atingir limite que possibilita realização de cirurgia de redução do estômago

Obeso faz regime de engorda para emagrecer

Alexandre Campbell/Folha Imagem
A., estudante que tenta ganhar peso para poder fazer cirurgia


LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

O advogado gaúcho Fabiano Gouveia, 28, já era um homem gordo, com seus 125 quilos distribuídos em 1,82 m, quando começou uma dieta de engorda, há um ano e nove meses.
Todos os dias, ele "punha para dentro" duas latas de leite condensado, alguns litros de refrigerante não-diet. Também empanturrava-se de pães e de maionese e avançava sobre nacos suculentos de carne com bastante gordura, fatias lustrosas de bacon e lingüiças. Um saco de 1 quilo de bombom da marca Ouro Branco era devorado em quatro dias.
Para arrematar, o jovem comprava baldes de 4 quilos de um alimento hipercalórico da marca Nutrisport, formulado para atletas e esportistas que desejam ganhar peso sem aumentar o volume das refeições. Praticantes de atividades físicas intensas usam esses alimentos para ganhar músculos. No caso de Fabiano, entretanto, a ingestão do composto vinha acompanhada da seguinte orientação, feita por seu médico: "Não mexa um dedo, não faça nenhuma atividade esportiva. Assim, todo o excesso alimentar se converterá em quilos de gordura corporal extra".
Fabiano seguiu à risca o conselho e, 70 dias depois de iniciado o regime, contava 19 quilos a mais, atingindo a marca de 134 quilos.
Hoje, o advogado pesa 71 quilos. É um homem elegante, mais para magro. Até cresceu. Mede 1,88 metro, seis centímetros a mais do que tinha na fase hiperadiposa. "Eu estava literalmente esmagado pela gordura. Minha coluna vertebral vergara-se, numa cifose, pelo excesso de peso", lembra. O incrível é que foi a dieta de engorda que abriu para Fabiano as portas do mundo dos magros.
Parece lógica torta. Não é. Um entre os 17 milhões de brasileiros obesos, o advogado resolveu recorrer ao expediente mais drástico para emagrecer: a cirurgia de redução de estômago, que promete perdas de até 40% da massa corpórea. E quase sem risco de reengorda.
Como se trata de cirurgia agressiva demais, as entidades médicas impuseram restrições à sua realização. A principal delas: só obesos gravíssimos, ou com sérios danos à saúde por causa do excesso de peso, são candidatos à operação.
Um estudo realizado no Brasil mostra que, em cada mil pacientes que fazem cirurgia da obesidade, três falecem por complicações decorrentes da operação. Há ainda complicações que, sem levar à morte, podem infligir sofrimentos grandes ao paciente (leia texto na pág. C3).
O crivo começa pela matemática. Calcula-se o índice de massa corporal (IMC), indicador que é o resultado da divisão do peso (expresso em quilos) pelo quadrado da altura (expressa em metro). Quem tiver IMC maior do que 40 pode fazer a operação. Quem tiver IMC entre 35 e 39,9 tem de provar por exames clínicos que apresenta o que os médicos chamam de "comorbidades" graves, ou doenças do peso excessivo.
Segundo o endocrinologista Alfredo Halpern, da Universidade de São Paulo, as comorbidades mais comuns associadas à obesidade são hipertensão arterial, diabetes, problemas na coluna, apnéia do sono e problemas coronarianos. "A chance de um obeso com IMC entre 35 e 39,99 não apresentar nenhuma comorbidade é de apenas 5%", diz.
Muitas vezes, essas comorbidades colocam em risco a vida de um paciente. Sabe-se, por exemplo, que na faixa dos 25 aos 35 anos a taxa de mortalidade dos grandes obesos é até 12 vezes maior do que na população em geral. É para esses que estão na linha de risco que se indica a cirurgia. E só para esses.
Com critérios tão seletivos, gente que não é obesa mórbida, mas está cansada da luta contra a balança, na maioria das vezes inglória, começa a ver na dieta de engorda o acesso mais fácil à cirurgia que, imaginam, será redentora.
No caso de Fabiano, a engorda foi calculada rigorosamente pelo seu médico. Antes, o advogado tinha IMC de 37,74. Depois de 70 dias de hiperalimentação, o IMC foi para 40,45. E veio a cirurgia.
Com a estudante de medicina A., 23, (ela prefere não revelar a identidade), está sendo um pouco diferente. A. está em pleno processo de engorda. Com 1,63 m e 84 quilos (IMC = 31,2), A. decidiu chegar aos 96 quilos. Terá IMC de 36,1, o que, acredita ela, tornará possível a cirurgia de obesidade. Nos sonhos da jovem, a meta será alcançada até dezembro.
O esforço de engorda da estudante é parecido com o do advogado. Como ela é paulistana e de origem italiana, porém, a dieta conta com um reforço extra nas massas, sempre besuntadas em molhos com muito creme de leite.
A. não contou com orientação médica para sua dieta. Ao contrário, fugiu do especialista que a aconselhou a perseverar nas dietas tradicionais de emagrecimento em vez de tentar a cirurgia. "Ele não teve compaixão. Só volto a me apresentar a um médico quando conquistar o peso indicado para a operação."
O cirurgião Marcelo Roque de Oliveira, 47, membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e da equipe de médicos do prestigioso Instituto Garrido, de São Paulo, tem horror aos expediente usado pelo advogado Fabiano e pela estudante A.
"Há o risco sério para os pacientes de essa engorda desencadear diabetes, hipertensão, lesões nas artérias, entupimentos nas pequenas artérias, problemas articulares, particularmente nos tornozelos, e afetar a coluna. E esses danos podem ser definitivos, sem remissão nem depois do emagrecimento", adverte Oliveira.
O médico sabe que há colegas seus (como foi o caso com o Fabiano) indicando a dieta de engorda, o que ele considera um grave desvio ético: "É o mesmo que um médico criar uma doença em seu paciente com o argumento de que depois vai curá-lo."
Colaborou HUMBERTO SILVA, da Agência Folha

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