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CECILIA GIANNETTI
Bairro das quatro letras
Não é lenda nem invenção de editor de caderno cultural o boom da Lapa; até o "Narco Íris" voltou a ser Arco-Íris
"UM CARA ATIROU no Arco-Íris!", a garota bufou e
puxou minha mão direita até ela, para que eu pudesse sentir
a palpitação alterada. Havia outros
indícios, além do coração em disparada, de que estava nervosa: olhos
esbugalhados, fala corrida, desconexa, e o fato de que fez uma desconhecida pôr a mão em seu peito enquanto tentava contar uma história.
A menina também podia estar
doidona: era a Lapa, afinal. A briga
estourou cinco minutos depois que
saí do "Narco Íris" -apelido do bar,
por conta da venda de tóxico no local. Um sujeito levantou e meteu bala noutro que lá estava, "sussa" com
sua cervejinha. Todos correram, até
o ferido. A garota afobada não soube
explicar se havia um por quê para o
faroeste caboclo que mal descrevia.
Isso aconteceu há mais ou menos
sete anos, quando o bairro carioca se
reerguia após uma temporada em
que figurou como inferno número
um do Rio, vencendo até Copacabana. Ainda era comum ouvir tiros em
seus botecos, mas o povo já começava a marcar presença nas sextas e sábados dos Arcos.
No início do século passado era
outra história. Lapa eram prostitutas, Portinari, sambistas, Villa-Lobos, políticos, Carlos Drummond de
Andrade, traficantes, Manuel Bandeira, travestis, João Gilberto, Carlos Lacerda, Rubem Braga, Mário
Lago e Madame Satã.
O local juntava pobres e ricos ao
mesmo pico, todo mundo atrás de
bordéis e cabarés, extensões de hotéis de luxo, como o Guanabara (onde se engendrou a candidatura de
Epitácio Pessoa à Presidência da República). Havia desde dona de prostíbulo leitora de Colette e Camilo
Castelo Branco até orquestra cigana, óperas e valsas no Danúbio Azul
e música popular no Capela.
A ditadura de Getúlio Vargas limpou a área, fechando prostíbulos e
causando a debandada geral de seus
maiores tesouros: boêmios e moças
francesas, austríacas, espanholas,
portuguesas, japonesas. Com o pós-guerra, chegaram as jukeboxes para
matar a música ao vivo, que até então figurara como seu segundo ingrediente aglutinador local (o primeiro era a prostituição).
Não por coincidência, Ipanema e
Copa passaram a acolher muita gente boa nas décadas seguintes. João
Gilberto, por exemplo, em seus tempos de Zé Maconha (pré-bossa), ia à
Lapa para pegar um fino e só. Música, fazia noutros cantos. O charme
de tempos idos não pertencia mais
ao lugar. O Circo Voador, celeiro da
geração "BRock", não chegou a modificar essa situação na década de
80. A turma enchia a cara em frente
à lona, mas o bairro ao redor dela
não existia para os roqueiros. Asa
Branca e as gafieiras atraíam outro
tipo de público. Era cada macaco no
seu galho, sem a misturança incrível
que testemunho agora quando passo de ônibus por ali de madrugada.
Hoje as ruas têm presença da polícia, em variação menos ostensiva
das blitze. O talento aglutinador do
bairro -que engloba funk, rock, gafieira, forró e hip hop- é explorado
em alguns livros como o de Moacyr
Andrade, "Lapa: Alegre Trópico"
(Relume Dumará), e "Lapa do Desterro e do Desvario", organizado por
Isabel Lustosa (Casa da Palavra).
Não é lenda nem invenção de editor de caderno cultural o boom da
Lapa, a variedade de opções musicais, de tipos e cores que circulam
pela Joaquim Silva. Até o "Narco
Íris" voltou a ser Arco-Íris. Cada bar
cospe um ritmo diferente na calçada
e chama gente de todo tipo. De dia,
destino das minhas caminhadas de
domingo; à noite, berço de quem
não dorme.
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