São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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DANUZA LEÃO

Um amor calmo

Era segunda-feira de Carnaval, e um casal, visivelmente estrangeiro, entrou no restaurante para almoçar; eram 15h30, sinal de que tinham ido dormir tarde na véspera. Ele devia ter uns 55, ela, uns 45; ambos em boa forma, queimados de sol, bermuda, camiseta, sem nenhuma concessão à moda ou à malhação. Era apenas um casal de turistas, dois turistas legais.
O forte naquele restaurante eram os produtos do mar; depois de olhar a carta de vinhos com atenção (mas sem exageros), ele pediu um branco, e os dois ficaram conversando, uma conversa normal.
Ela não tinha cara de esposa, mas também não tinha cara de amante. Não havia entre os dois aquela indiferença de quando o casamento já desandou, mas o clima também não era de um querer impressionar o outro. Pareciam pessoas normais, resolvidas, que estavam juntas porque queriam, e suficientemente maduras para não ficarem de beijinhos em lugares públicos -e talvez nem privados.
O vinho chegou; ele sentiu o aroma, provou, fez tudo que fazem os conhecedores, discreta e rapidamente, e sobretudo -sobretudo- não fez disso a razão principal nem do almoço nem da vida. Também não deu para ela provar nem pediu sua opinião, nem havia por quê. Era ele que sabia, era ele que comandava, e o principal: ela sabia que podia confiar nele, portanto não havia nada a ser discutido.
Continuaram conversando -pouco- sobre assuntos mais ou menos gerais, atentos ao que se passava em volta, mas sem perder tempo com comentários sem importância só para não ficarem calados. Eles tinham esse privilégio: conviviam bem com o silêncio.
Quando ele achou que o vinho, que estava num balde de gelo, estava na temperatura certa, serviu os dois copos. Nem aí houve comentários tipo o vinho está assim ou assado: já se sabia que estava bom, portanto não havia o que discutir, era só beber e pronto.
Aí chegou à mesa um imenso prato cheio de ouriços. Nessa hora houve uma certa tensão: do total relax, passaram a uma atitude mais engajada, olharam e discutiram sobre eles com a maior seriedade, e comeram -comeram não, saborearam- todos eles com respeito e prazer: muito prazer. Em seguida partiram para uma montanha de ostras (a essas alturas já na segunda garrafa de vinho branco), e foram se descontraindo.
A conversa animou, e falaram sobre grandes momentos em que haviam comido coisas inesquecíveis, dos lugares a que pretendiam voltar para repetir algum prato maravilhoso; arremataram o almoço com uns lagostins grelhados, cujas cabeças foram sorvidas com aquele ardor de só quem sabe que é na cabeça que estão os melhores sabores -e isso em qualquer bicho.
Café, a conta, se levantaram e saíram; ele botou a mão no ombro dela muito naturalmente, como se faz com uma coisa que não precisa ser conquistada porque já tem dono; ela, que estava acostumada a isso, nem segurou a mão dele para fazer um carinho, só ficou normal; saíram calmos, tranqüilos, seguros e de bem com a vida, uma sensação talvez maior do que a de felicidade, que é sempre um pouco nervosa.
Dali devem ter ido para o hotel dormir um pouco, sem precisar se provar que se amavam.
Deve ser muito bom viver assim.


E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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