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PASQUALE CIPRO NETO
Quando o "defeito" vira qualidade
Há algum tempo, a Fuvest
incluiu em sua prova de
português uma questão baseada
neste texto publicitário:
"Reduit é leite puro e saboroso.
Reduit é saudável, pois nele quase
toda a gordura é retirada, permanecendo todas as outras qualidades nutricionais. Reduit é bom
para jovens, adultos e dietas de
baixas calorias".
Aparentemente inofensivo e bonitinho, o texto é, na verdade,
uma longa coleção de problemas.
Há uma bela diferença entre o
que se quis dizer e o que efetivamente se disse.
Comecemos pela gordura. De
acordo com o texto, esse hoje indesejável e demoníaco ser das trevas é qualidade ou defeito? A julgar pela peça publicitária, é qualidade, o que se constata pelo trecho "permanecendo todas as outras qualidades nutricionais".
Se se elimina a gordura e permanecem "todas as outras qualidades nutricionais", então a gordura é uma delas.
O pior é que, a menos que eu esteja enganado, a gordura é mesmo uma qualidade nutricional (e
necessária). Só não é aconselhável
para quem precisa submeter-se a
dietas de baixas calorias. O texto
não diz isso claramente.
Um dos itens da questão que a
banca formulou pedia justamente o que acabamos de discutir.
Outro item pedia o seguinte: "As
qualidades nutricionais de um
produto, segundo o texto, sempre
fazem bem à saúde? Justifique
sua resposta".
A julgar pelo que se deduziu do
texto, deve-se responder que nem
sempre as qualidades nutricionais de um produto fazem bem à
saúde. Se a gordura é qualidade e
é retirada, na visão do redator ela
certamente não faz bem à saúde.
Outra discussão interessante
diz respeito ao uso de "nele"
("pois nele quase toda a gordura é
retirada"). Sem muita reflexão,
pode-se concluir que a simples
troca de "nele" por "dele" resolve
o problema. Afinal, retira-se a
gordura do leite, e não no leite.
Ledo e ivo engano, diria mestre
Cony. Não se retira a gordura de
Reduit; Reduit resulta da retirada
da gordura do leite in natura.
O melhor, é claro, fica para o
fim, nesta deliciosa passagem:
"Reduit é bom para jovens, adultos e dietas de baixas calorias". A
julgar pelo texto, pode-se imaginar este diálogo:
"O senhor tem filhos?"
"Sim, tenho três."
"São novinhos?"
"Um é jovem, o outro é adulto."
"Mas o senhor disse que tem
três filhos. E o terceiro?"
"É dieta de baixas calorias.".
Como se vê, o texto mistura
alhos com bugalhos. Ao usar a
aditiva "e" para agrupar jovens,
adultos e dietas de baixas calorias, o redator igualou desiguais.
Para apimentar um pouco mais
a conversa, pode-se dizer que a
ordem das palavras permite que
se pergunte a que termo se refere
a expressão "de baixas calorias"
(só a "dietas" ou também a "jovens" e "adultos"?).
Fica o conselho: ao ler, não se limite à superfície. Duvide, releia,
questione. Sempre e sempre.
A esta altura, talvez você espere
que eu apresente o texto "corrigido". A tarefa, agora, cabe a você,
caríssimo leitor. Tente. Você certamente conseguirá. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail: inculta@uol.com.br
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