São Paulo, quinta-feira, 29 de março de 2001

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PASQUALE CIPRO NETO

Quando o "defeito" vira qualidade

Há algum tempo, a Fuvest incluiu em sua prova de português uma questão baseada neste texto publicitário:
"Reduit é leite puro e saboroso. Reduit é saudável, pois nele quase toda a gordura é retirada, permanecendo todas as outras qualidades nutricionais. Reduit é bom para jovens, adultos e dietas de baixas calorias".
Aparentemente inofensivo e bonitinho, o texto é, na verdade, uma longa coleção de problemas. Há uma bela diferença entre o que se quis dizer e o que efetivamente se disse.
Comecemos pela gordura. De acordo com o texto, esse hoje indesejável e demoníaco ser das trevas é qualidade ou defeito? A julgar pela peça publicitária, é qualidade, o que se constata pelo trecho "permanecendo todas as outras qualidades nutricionais".
Se se elimina a gordura e permanecem "todas as outras qualidades nutricionais", então a gordura é uma delas.
O pior é que, a menos que eu esteja enganado, a gordura é mesmo uma qualidade nutricional (e necessária). Só não é aconselhável para quem precisa submeter-se a dietas de baixas calorias. O texto não diz isso claramente.
Um dos itens da questão que a banca formulou pedia justamente o que acabamos de discutir. Outro item pedia o seguinte: "As qualidades nutricionais de um produto, segundo o texto, sempre fazem bem à saúde? Justifique sua resposta".
A julgar pelo que se deduziu do texto, deve-se responder que nem sempre as qualidades nutricionais de um produto fazem bem à saúde. Se a gordura é qualidade e é retirada, na visão do redator ela certamente não faz bem à saúde.
Outra discussão interessante diz respeito ao uso de "nele" ("pois nele quase toda a gordura é retirada"). Sem muita reflexão, pode-se concluir que a simples troca de "nele" por "dele" resolve o problema. Afinal, retira-se a gordura do leite, e não no leite.
Ledo e ivo engano, diria mestre Cony. Não se retira a gordura de Reduit; Reduit resulta da retirada da gordura do leite in natura.
O melhor, é claro, fica para o fim, nesta deliciosa passagem: "Reduit é bom para jovens, adultos e dietas de baixas calorias". A julgar pelo texto, pode-se imaginar este diálogo:
"O senhor tem filhos?"
"Sim, tenho três."
"São novinhos?"
"Um é jovem, o outro é adulto."
"Mas o senhor disse que tem três filhos. E o terceiro?"
"É dieta de baixas calorias.".
Como se vê, o texto mistura alhos com bugalhos. Ao usar a aditiva "e" para agrupar jovens, adultos e dietas de baixas calorias, o redator igualou desiguais.
Para apimentar um pouco mais a conversa, pode-se dizer que a ordem das palavras permite que se pergunte a que termo se refere a expressão "de baixas calorias" (só a "dietas" ou também a "jovens" e "adultos"?).
Fica o conselho: ao ler, não se limite à superfície. Duvide, releia, questione. Sempre e sempre.
A esta altura, talvez você espere que eu apresente o texto "corrigido". A tarefa, agora, cabe a você, caríssimo leitor. Tente. Você certamente conseguirá. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

E-mail: inculta@uol.com.br


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