São Paulo, quinta-feira, 29 de abril de 2010

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PASQUALE CIPRO NETO

Inspiração e transpiração


Essa confluência de palavras cognatas é intrinsecamente ligada à manifestação da inquietude das almas criadoras

O CARO LEITOR certamente já ouviu ou disse a expressão que aparece no título desta coluna. Quando se fala de uma obra-prima ou do grande talento de alguém, é normal o estabelecimento de uma quantificação ("X% de inspiração e Y% de transpiração", em que, obviamente, X + Y = 100). A discussão é antiga, antiquíssima -remonta aos tempos de Platão. A quem se interessar, sugiro a leitura de "Íon", diálogo da fase que alguns chamam de socrática do grande filósofo grego, que nasceu em 428 a. C.
Pois bem. Dia desses, uma amiga me perguntou "como é possível a palavra "inspiração" ter ao mesmo tempo o sentido "pneumológico" e o outro". O "outro" sentido a que ela se referia é o do talento para criar o que é genial, acima do comum etc. Pois minha resposta (ou minha tentativa) virá em forma de coluna.
Mais uma vez, vamos mergulhar no maravilhoso e muitas vezes insondável universo das palavras, de sua história, de sua evolução -da etimologia, enfim. Morro de vontade de começar com uma provocação, com uma aparente demonstração de nonsense. Bem, já que falamos de inspiração e transpiração, vou respirar fundo, criar coragem e... Lá vai a provocação: o leitor mais velho certamente se lembra das espiriteiras, não? Na minha infância, na minha sempre querida Mooca, bairro de São Paulo em que me criei, usávamos as espiriteiras para preparar ou aquecer a comida. E qual era o combustível que "movia" as espiriteiras? Era o espírito, uai! Espírito? Xi! O professor pirou de vez!
Pois então vá ao "Houaiss" e veja qual é a acepção 18 de "espírito": "Líquido obtido pela destilação; álcool, álcool etílico". A acepção 18.1 ("por extensão de sentido") é esta: "Qualquer bebida alcoólica". E a 18.2 ("regionalismo brasileiro") é "aguardente de cana; cachaça". Informo que a edição que tenho aqui é a primeira, anterior à ultranefanda "reforma".
Mas o que será que o espírito e a espiriteira têm que ver com a transpiração e a inspiração? Tudo, caro leitor. Palavras como "respirar", "transpirar", "inspirar", "suspirar", "expirar", "espiritualizar", "conspirar" (que são cognatas, ou seja, vêm da mesma raiz) baseiam-se no elemento de composição latino "-spir(o)-", que vem do verbo "spirare" ("soprar", "exalar um sopro, um odor"). Diz o "Houaiss" que desse sentido inicial de "spirare" derivam os sentidos figurados de "estar vivo", "estar inspirado", "respirar" etc.
No verbete "espírito", o "Houaiss" diz que a palavra vem do latim "spiritus" ("sopro, exalação, sopro vital, espírito, alma"). Ainda nesse verbete, o dicionário diz que, segundo Antenor Nascentes, "esprito, espírito foi o nome que os antigos químicos deram aos produtos de destilação, por sua primitiva volatilidade". É bom lembrar que "volátil" é o "que voa ou pode voar". E, para voar, é preciso um sopro (ou vários...).
Posso estar enganado, mas acho que, ao comentar o processo de criação da genial letra de "Construção", o grande Chico Buarque disse que a obra resultou muito mais de transpiração do que de inspiração.
Discussão à parte, o fato é que essa confluência de palavras cognatas (em que incluo "espírito", com todos os seus sentidos) é intrinsecamente ligada à manifestação da inquietude das almas criadoras. E essa inquietude é sopro de vida, alma: espírito. Mas é bom ir devagar com um certo espírito... É isso.

inculta@uol.com.br


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