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RUBEM ALVES
A ética angelical
Cantei, mas não acreditei. Eu não queria ser anjo. É chato ser anjo. Eu era um menino. Gostava de ser menino
TENTAREI ESCREVER DE forma
didática, como se estivesse
dando uma aula. Inicio minha
exposição afirmando que há duas
éticas: a ética dos anjos, celestial,
perfeita, revelada, e a ética dos homens, imperfeita, agora é de um jeito, depois é de outro jeito.
Aprendi sobre a ética dos anjos
quando tinha não mais que sete
anos. Eu freqüentava (contra a vontade) a escola dominical de uma
igreja protestante, uma espécie de
aula de catecismo, lá no interior de
Minas. Ensinaram-me a cantar e
aprendi: "Eu quero ser um anjo, um
anjo do bom Deus, e imitar na terra
os anjos lá dos céus..."
Cantei, mas não acreditei. Eu não
queria ser anjo. É chato ser anjo. Eu
era um menino. Gostava de ser menino. Não me entrava pela cabeça
que Deus, havendo-me criado menino, quisesse que fosse anjo. Eu gostava de fazer muitas coisas que os
anjos que moravam na minha imaginação jamais fariam: trepar em jabuticabeiras, balançar, andar de carrinho de rolimã, empinar pipa, rodar
pião, jogar bolinha de gude, brincar
de mocinho e matar bandidos.
Relato esse incidente como ilustração para uma curtíssima meditação que vou fazer sobre uma coincidência que me surpreendeu quando
me dei conta dela: Sua Santidade, o
papa, cantaria o mesmo hino comigo, menino! Mais surpreendente
ainda: acreditando! Porque esse hino protestante é o resumo da ética
angelical católica! Se eu estiver equivocado, sei que algum bispo se
apressará em me corrigir, pelo que
lhe serei grato.
O argumento é simples: Deus revelou à Igreja Católica, e somente a
ela, a verdade sobre o mundo celestial perfeito, onde moram os anjos.
Se Deus criou esse mundo celestial
perfeito, por oposição ao mundo pecaminoso em que vivemos, segue-se
que o Seu desejo é que os seres humanos "imitem" o mundo celestial.
Essa é a razão pela qual todos os santos tenham seus olhos piedosamente voltados para cima. São cidadãos
de um outro mundo.
No mundo celestial perfeito, as
coisas e as ações dos humanos, esses
seres "degredados nesse vale de lágrimas", não existem por serem imperfeitas. Aids, camisinha, abortos,
masturbação, divórcio, inseminação
artificial, explosão populacional são
inexistentes. Por serem inexistentes
não podem ser pensadas a não ser
como negação da sua existência.
Daí a irredutibilidade da Igreja
Católica. Ela não pode pensar diferente. Não é que não "queira" pensá-los -é que "não consegue", dadas as
premissas do seu pensamento.
Como solução para a Aids e a explosão populacional, ela prescreve a
"abstinência sexual". Conselho tolo.
Papa, cardeais e teólogos saibam
que tal conselho é inútil.
Quem diz que ele é inútil? A experiência. Experiência é o oposto à revelação. A revelação desce de cima, é
divina e completa. A igreja raciocina
de cima para baixo, dedutivamente.
Quem tem a revelação não precisa
investigar. A experiência, ao contrário, começa de baixo, é humana, sem
certezas. Mas está decretado que
pensar a partir da experiência é heresia. Roger Bacon (século 13), um
dos precursores da ciência, amargou
15 anos na prisão por afirmar que o
conhecimento vem pela experiência. Da mesma forma como o jesuíta
Jon Sobrino, nosso contemporâneo,
foi condenado por esse papa a amargar silêncio até o fim dos seus dias...
Enquanto isso, cantemos "eu quero ser um anjo..."
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