São Paulo, terça-feira, 29 de maio de 2007

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RUBEM ALVES

A ética angelical

Cantei, mas não acreditei. Eu não queria ser anjo. É chato ser anjo. Eu era um menino. Gostava de ser menino

TENTAREI ESCREVER DE forma didática, como se estivesse dando uma aula. Inicio minha exposição afirmando que há duas éticas: a ética dos anjos, celestial, perfeita, revelada, e a ética dos homens, imperfeita, agora é de um jeito, depois é de outro jeito.
Aprendi sobre a ética dos anjos quando tinha não mais que sete anos. Eu freqüentava (contra a vontade) a escola dominical de uma igreja protestante, uma espécie de aula de catecismo, lá no interior de Minas. Ensinaram-me a cantar e aprendi: "Eu quero ser um anjo, um anjo do bom Deus, e imitar na terra os anjos lá dos céus..."
Cantei, mas não acreditei. Eu não queria ser anjo. É chato ser anjo. Eu era um menino. Gostava de ser menino. Não me entrava pela cabeça que Deus, havendo-me criado menino, quisesse que fosse anjo. Eu gostava de fazer muitas coisas que os anjos que moravam na minha imaginação jamais fariam: trepar em jabuticabeiras, balançar, andar de carrinho de rolimã, empinar pipa, rodar pião, jogar bolinha de gude, brincar de mocinho e matar bandidos.
Relato esse incidente como ilustração para uma curtíssima meditação que vou fazer sobre uma coincidência que me surpreendeu quando me dei conta dela: Sua Santidade, o papa, cantaria o mesmo hino comigo, menino! Mais surpreendente ainda: acreditando! Porque esse hino protestante é o resumo da ética angelical católica! Se eu estiver equivocado, sei que algum bispo se apressará em me corrigir, pelo que lhe serei grato.
O argumento é simples: Deus revelou à Igreja Católica, e somente a ela, a verdade sobre o mundo celestial perfeito, onde moram os anjos. Se Deus criou esse mundo celestial perfeito, por oposição ao mundo pecaminoso em que vivemos, segue-se que o Seu desejo é que os seres humanos "imitem" o mundo celestial. Essa é a razão pela qual todos os santos tenham seus olhos piedosamente voltados para cima. São cidadãos de um outro mundo.
No mundo celestial perfeito, as coisas e as ações dos humanos, esses seres "degredados nesse vale de lágrimas", não existem por serem imperfeitas. Aids, camisinha, abortos, masturbação, divórcio, inseminação artificial, explosão populacional são inexistentes. Por serem inexistentes não podem ser pensadas a não ser como negação da sua existência.
Daí a irredutibilidade da Igreja Católica. Ela não pode pensar diferente. Não é que não "queira" pensá-los -é que "não consegue", dadas as premissas do seu pensamento.
Como solução para a Aids e a explosão populacional, ela prescreve a "abstinência sexual". Conselho tolo. Papa, cardeais e teólogos saibam que tal conselho é inútil.
Quem diz que ele é inútil? A experiência. Experiência é o oposto à revelação. A revelação desce de cima, é divina e completa. A igreja raciocina de cima para baixo, dedutivamente. Quem tem a revelação não precisa investigar. A experiência, ao contrário, começa de baixo, é humana, sem certezas. Mas está decretado que pensar a partir da experiência é heresia. Roger Bacon (século 13), um dos precursores da ciência, amargou 15 anos na prisão por afirmar que o conhecimento vem pela experiência. Da mesma forma como o jesuíta Jon Sobrino, nosso contemporâneo, foi condenado por esse papa a amargar silêncio até o fim dos seus dias...
Enquanto isso, cantemos "eu quero ser um anjo..."


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