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PASQUALE CIPRO NETO
"Estamos quites"
Há alguns dias, a Folha
publicou um título em que
se lia isto: "Bush deixou EUA vulnerável, diz Kerry". Na mesma
página, lia-se este título: "EUA
vêem em Fallujah porto seguro da
insurgência". Em outra página
da mesma edição, lia-se estoutro:
"EUA buscam meio de adiar eleição em caso de ataque".
Afinal de contas, a concordância com "EUA" ou com "Estados
Unidos" se faz no singular ou no
plural? Já tratei do caso, mas não
custa lembrar que, como (fora dos
títulos jornalísticos) o nome desse
país sempre é usado com o artigo
"os" (ninguém diz que veio "de
Estados Unidos" ou que nasceu
"em Estados Unidos"), a concordância deve ser feita no plural:
"Os Estados Unidos ignoram as
decisões da ONU", "Os Estados
Unidos pensavam que dominariam...", "A imprensa considera
os Estados Unidos favoritos".
Não custa lembrar também que
a falta do artigo "os" antes de
"EUA" nos títulos jornalísticos
não significa absolutamente nada em termos de concordância,
por uma razão muito simples:
não é só com "EUA" que o artigo
desaparece nos títulos.
Moral da história: no primeiro
exemplo citado nesta coluna, o
adjetivo "vulnerável" deveria ter
sido flexionado no plural ("Bush
deixou EUA vulneráveis"). Tomado ao pé da letra, o título publicado permite entender que,
quando deixou os EUA, Bush era
ou estava vulnerável. Muda tudo:
o termo ao qual se refere "vulnerável" e o significado de "deixar".
É aí que entra o tal "conhecimento de mundo", que nos permite
entender a intenção do redator.
O caso em questão permite outra observação, relativa ao emprego do adjetivo com os complementos de certos verbos ("considerar", deixar", "manter" etc.). O
leitor certamente já notou que é
muito comum o emprego de "claro", por exemplo, em frases como
"Quero deixar claro minhas posições". O fenômeno é semelhante
ao que se observa nos casos em
que o verbo vem antes do sujeito
("Sobrou cinco livros"), o que evidencia a clara tendência de boa
parte dos falantes de não efetuar
a concordância quando o adjetivo ou o verbo são antepostos.
Na língua padrão, sobretudo na
modalidade escrita, o que se registra em casos semelhantes aos
citados é a concordância do adjetivo e do verbo com os termos aos
quais se referem: "Quero deixar
claras minhas posições", "Sobraram cinco livros".
Por falar em concordância, é
bom aproveitar a ocasião para
tratar de uma das perguntas mais
freqüentes dos leitores: a flexão de
"quite". Na linguagem familiar
ou espontânea, é normal o emprego da forma "quites", invariável, qualquer que seja o termo ao
qual ela se refira: "Estou quites
com o Exército". Uma pessoa não
está "quites" com nada; está "quite". Duas ou mais pessoas estão
"quites": "Estamos quites".
Não foi por acaso que, no fim de
"Memórias Póstumas de Brás Cubas", Machado de Assis escreveu
estas palavras: "Somadas umas
cousas e outras, qualquer pessoa
imaginará que não houve sobra
nem míngua, e conseguintemente
que saí quite com a vida".
Convém lembrar que qualquer
semelhança entre "quite" e "desquite" não é mera coincidência:
"quite" vem de "quitar"; "desquite" vem de "desquitar" (que, de
acordo com os dicionários, vem
de "des-" + "quitar"). É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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