São Paulo, quinta-feira, 29 de julho de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

"Estamos quites"

Há alguns dias, a Folha publicou um título em que se lia isto: "Bush deixou EUA vulnerável, diz Kerry". Na mesma página, lia-se este título: "EUA vêem em Fallujah porto seguro da insurgência". Em outra página da mesma edição, lia-se estoutro: "EUA buscam meio de adiar eleição em caso de ataque".
Afinal de contas, a concordância com "EUA" ou com "Estados Unidos" se faz no singular ou no plural? Já tratei do caso, mas não custa lembrar que, como (fora dos títulos jornalísticos) o nome desse país sempre é usado com o artigo "os" (ninguém diz que veio "de Estados Unidos" ou que nasceu "em Estados Unidos"), a concordância deve ser feita no plural: "Os Estados Unidos ignoram as decisões da ONU", "Os Estados Unidos pensavam que dominariam...", "A imprensa considera os Estados Unidos favoritos".
Não custa lembrar também que a falta do artigo "os" antes de "EUA" nos títulos jornalísticos não significa absolutamente nada em termos de concordância, por uma razão muito simples: não é só com "EUA" que o artigo desaparece nos títulos.
Moral da história: no primeiro exemplo citado nesta coluna, o adjetivo "vulnerável" deveria ter sido flexionado no plural ("Bush deixou EUA vulneráveis"). Tomado ao pé da letra, o título publicado permite entender que, quando deixou os EUA, Bush era ou estava vulnerável. Muda tudo: o termo ao qual se refere "vulnerável" e o significado de "deixar". É aí que entra o tal "conhecimento de mundo", que nos permite entender a intenção do redator.
O caso em questão permite outra observação, relativa ao emprego do adjetivo com os complementos de certos verbos ("considerar", deixar", "manter" etc.). O leitor certamente já notou que é muito comum o emprego de "claro", por exemplo, em frases como "Quero deixar claro minhas posições". O fenômeno é semelhante ao que se observa nos casos em que o verbo vem antes do sujeito ("Sobrou cinco livros"), o que evidencia a clara tendência de boa parte dos falantes de não efetuar a concordância quando o adjetivo ou o verbo são antepostos.
Na língua padrão, sobretudo na modalidade escrita, o que se registra em casos semelhantes aos citados é a concordância do adjetivo e do verbo com os termos aos quais se referem: "Quero deixar claras minhas posições", "Sobraram cinco livros".
Por falar em concordância, é bom aproveitar a ocasião para tratar de uma das perguntas mais freqüentes dos leitores: a flexão de "quite". Na linguagem familiar ou espontânea, é normal o emprego da forma "quites", invariável, qualquer que seja o termo ao qual ela se refira: "Estou quites com o Exército". Uma pessoa não está "quites" com nada; está "quite". Duas ou mais pessoas estão "quites": "Estamos quites".
Não foi por acaso que, no fim de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", Machado de Assis escreveu estas palavras: "Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve sobra nem míngua, e conseguintemente que saí quite com a vida".
Convém lembrar que qualquer semelhança entre "quite" e "desquite" não é mera coincidência: "quite" vem de "quitar"; "desquite" vem de "desquitar" (que, de acordo com os dicionários, vem de "des-" + "quitar"). É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

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