São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2004

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NAS RUAS

Esconder-se em buraco de viaduto, não revelar o nome ou marcar casas que fazem doações são algumas das táticas adotadas

Excluído revela estratégia de sobrevivência

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

Pedro, 20, abre um sorriso bonito e largo, quase infantil, para falar de sua "casa", um buraco no alto do viaduto Glicério. "Teto, eu tenho muito, um viaduto inteiro. Falta só o chão."
Em época de medo e assassinatos em série de moradores de rua (seis vítimas fatais até a última sexta-feira), a moradia de Pedro, Kelly, André e Ana Paula é exemplo de estratégia de sobrevivência.
A velha escada de madeira com 14 degraus dá acesso ao esconderijo. Quando os habitantes do buraco se alojam, recolhe-se a escada e, pronto, os quatro estão a sete metros inacessíveis do chão. Flutuam a salvo, dentro da barriga do monstrengo de concreto.
O lugar é quentinho. Cimento e armações de aço acumulam o calor do sol durante o dia. À noite, difundem a energia para dentro do buraco dos quatro jovens amigos. Também tem o leve balanço da estrutura (quando passa um carro mais pesado, sente-se o chão descer e subir).
"É bom para dormir", diz Pedro, a quem o barulho da pista de rolamento, dois metros acima da cabeça, não incomoda. "Quem mora na rua tem ouvidos calejados", explica o rapaz.

Nome e sobrenome
Um entre os 10 mil moradores de rua de São Paulo, Pedro está longe do perfil médio da categoria: "Põe aí que eu sou um homem feliz", exige. Já é uma diferença. Outra: Pedro tem família estruturada em Sorocaba (100 km de São Paulo). Não mora com ela porque quer "ser livre". "Eu não agüentava todo mundo me cobrando."
Pedro não bebe, não usa crack ("o diabo em forma de fumaça", explica aos gritos um usuário). Tem namorada (metade dos moradores de rua vive sozinho). É voluntário na "Associação Minha Rua, Minha Casa", uma ONG de ajuda aos moradores de rua do centro de São Paulo. Deixa-se fotografar e apresenta-se com o nome completo: Pedro Henrique de Noronha Braga.
Aí tem uma enorme distinção. A população de rua odeia ser identificada. Freqüentemente, usa nomes falsos. É outra estratégia de sobrevivência.
Maria, 28, não quer ser fotografada e tampouco autoriza a divulgação de seu nome. A mãe, em Ilhéus, não sabe que a filha vive na rua. "Ela morreria de tristeza."
A invisibilidade também ajuda quando tem de recorrer aos albergues públicos, que não gostam de moradores de rua renitentes. "Digo que perdi meus documentos, invento um nome e me transformo em outra pessoa, entrando pela primeira vez na instituição."
Maria tem dois filhos, Lúcia, de um ano e nove meses, e Ricardo, 8, matriculado na segunda série do CEU de Perus, na zona norte da capital. A pequenininha, ela quase perdeu.
Grávida, Maria entrou em trabalho de parto. Foi levada a três hospitais. Despacharam-na de volta ao mocó depois da prescrição de Buscopan. Sozinha, ela deu à luz Lúcia. O PM que lhe ouviu os gritos chegou a tempo de cortar o cordão umbilical e aspirar dos pulmões da menina os restos de placenta. "Mais um pouco e ela morreria", lembra a mãe.
O marido, dependente de crack, é Maria quem arrasta todo dia para o trabalho de recolher caixas de frutas que depois são revendidas no mercado municipal. "Dá para tirar entre R$ 50 e R$ 100 por semana." É raro a família não conseguir faturar pelo menos um salário mínimo no mês. "Mas, muitas vezes, acaba tudo nas mãos do traficante", explica.
Evangélica, Maria organiza a vida dos 17 moradores de rua que se agrupam atrás do Mercado Municipal. Ela e os 11 homens catam caixas. As cinco outras mulheres se prostituem no largo do Arouche. Todos, menos Maria, são dependentes de crack. "Mas ninguém fuma na frente das crianças, não. Eu não deixo."
Por causa dos assassinatos dos últimos dias, Maria agora tem um trabalho extra: organizar homens para cumprir, em grupos de três, turnos de vigilância de três horas cada. Cabe a ela acordar os vigias da vez. Na quarta-feira, Maria estava furiosa com seus comandados. Bêbados demais, eram incapazes de "distinguir um cachorro de um assassino", disse.
A comida vem de doações. Todas as terças, quartas e quintas-feiras, passa a Kombi de um grupo religioso diferente, que ajuda com mantimentos, sopa ou refeições embaladas em quentinhas.
A água é comprada em galões de cinco litros. Maria toma banho e lava Lúcia e Ricardo com três galões, um prodígio quando se considera que, na média, cada habitante da cidade consome por dia 74 litros de água para se banhar.

Grupos de apoio
São inúmeros os grupos de ajuda à população de rua, além do trabalho da Secretaria Municipal de Assistência Social. Calcula-se que São Paulo conte hoje com 2.100 pessoas, entre contratados e voluntários, para cuidar, providenciar banho, alimentar, educar, profissionalizar ou simplesmente entreter a população de rua.
Nos baixos do viaduto do Glicério funciona um desses grupos. O barulho dos carros quase abafa os alto-falantes que tocam Beatles enquanto chegam homens e mulheres de rua para o almoço.
Em um canto, cadeiras e mesas estão dispostas para quem quiser ler os jornais do dia. Em outro, grupos jogam dominó, damas e xadrez. Numa mesa, recolhem-se as inscrições para o banho, atividade das mais concorridas.
"Ficar próximo do centro da cidade [onde está o lixo mais rico] e dessa rede de solidariedade é sabedoria", explica a freira Ivete de Jesus, 61, há 29 anos trabalhando com populações de rua.
Nos bairros, a vida é mais difícil e os moradores de rua têm de se valer de códigos próprios, como marcar as casas que lhes dão comida ou roupas com um "X" na campainha. Outros que passarem pelo local já saberão: quem pedir, lá receberá.
Durante anos, sempre no período da Quaresma e em dezembro, irmã Ivete fez questão de viver com os moradores de rua, para melhor entendê-los. Seu depoimento é instrutivo a respeito dos limites do assistencialismo:
"Quando se está deitado ou sentado no chão, você vê a cidade de uma outra perspectiva. Vem a mocinha, vê você com frio, fica com pena e dá a blusa de lã que está vestindo. Você agradece com um "Deus lhe pague". Mas amanhã, se fizer sol, a roupa vai para o lixo. Quem mora na rua não tem guarda-roupa."
A população é generosa, dá comida e roupas, o governo municipal equipa os abrigos e albergues, já não se aceita chamar os moradores de rua de "mendigos", pelo teor negativo da palavra, associada à vadiagem. Mas não se resolve o problema. Antes, ele se agrava.
Em 1994, eram 8.000 os moradores de rua. Dez anos depois, esse contingente aumentou 25%, contra um crescimento populacional, no mesmo período, de 2%. A demografia ascendente ainda tem complicadores.
O presidente da "Associação Minha Rua, Minha Casa", Cláudio Elias Conz, calcula que 30% dos moradores de rua estão nessa circunstância por distúrbios psiquiátricos, alcoolismo ou dependência de drogas. Algo como 60% são desempregados. Apenas 10% faz da rua um estilo.
Os primeiros exigem tratamento. Os segundos, uma chance. Aos terceiros bastam latinhas, papelão e ferro velho para catar, "porque esse também é um trabalho digno", lembra Pedro.


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