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"PAPAGAIOS-CIENTÍFICOS"
Profissionais criticam relação promíscua com laboratórios, calcada em benefícios pessoais
Médicos denunciam favores de laboratórios
CLÁUDIA COLLUCCI
DA REPORTAGEM LOCAL
"É promíscua a relação entre
médicos e a indústria farmacêutica. Muitos se transformaram em
garotos-propaganda de luxo dos
laboratórios." As declarações são
do cardiologista Roberto Luiz
d'Ávila, diretor-corregedor do
CFM (Conselho Federal de Medicina), que tem a missão de julgar
as infrações éticas da categoria.
"São papagaios-científicos",
emenda o clínico-geral Antonio
Carlos Lopes, professor titular da
Unifesp (Universidade Federal de
São Paulo) e presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica,
que reúne 40 mil profissionais.
O fenômeno não é exclusivo do
país, mas, pela primeira vez, médicos brasileiros renomados vêm
a público denunciar o lado negro
da relação médico e laboratório,
que, muitas vezes, estaria calcada
mais em benefícios pessoais do
que no bem da população.
Lopes, por exemplo, afirma ter
sido convidado inúmeras vezes
por laboratórios para fazer apresentações favoráveis a determinados remédios. "Nunca aceitei.
Mas sei de médicos que recebem
R$ 5.000, em média, por apresentação, viagem aérea de primeira
classe, hotel cinco estrelas, tudo
com direito a acompanhante."
Não há crime na prática, desde
que o médico informe, na apresentação, que há um conflito de
interesse, já que sua participação
está sendo paga pela instituição
interessada, conforme determina
o CFM e a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
"Ninguém respeita isso. Já cheguei a interromper pelo menos
duas mesas-redondas em eventos
científicos em razão de conflito de
interesse não revelado por parte
de certos médicos", afirma Lopes.
Ele revela ainda ter sofrido pressões para publicar artigos científicos financiados por laboratórios
em troca da compra de anúncios
na revista da sociedade que preside. "Também não aceitei esse tipo
de interferência. Tudo o que publicamos passa pelo crivo do conselho editorial." Lopes se nega a
fornecer os nomes dos laboratórios por falta de provas.
Nos últimos três anos, vários artigos foram publicados pela imprensa internacional informando
que a indústria farmacêutica contrata "escritores fantasmas" para
elaborarem artigos científicos favoráveis às suas drogas e, depois,
paga cientistas renomados para
assiná-los.
Neste ano, o ex-editor do British
Medical Journal, Richard Smith,
denunciou como os laboratórios
manipulam os periódicos científicos com pesquisas que fazem seus
remédios parecerem muito melhores do que são.
Assédio
Apesar de reconhecer o problema do assédio, o CFM diz que não
consegue punir os médicos pois
não há denúncias formais sobre
as infrações, sem as quais não há
como iniciar um processo disciplinar no conselho, ação que poderia levar à cassação do registro
profissional do médico.
"Como muitos se beneficiam
dessas vantagens, ninguém denuncia. A maioria dos médicos
não vê problema de usufruir de
uma "delicadeza" do laboratório. É
o que eu chamo de elasticidade
moral", afirma d'Ávila.
Segundo d'Ávila e Lopes, o assédio dos laboratórios sobre os médicos ocorre de várias formas, tais
como na distribuição de brindes
pelos propagandistas nos consultórios, no oferecimento de viagens em congressos nacionais e
internacionais e no pagamento de
palestras para falar de pesquisas
positivas a determinadas drogas.
Os profissionais mais visados
seriam aqueles que lidam com
doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, e prescrevem remédios de uso continuado. "É um
cliente em potencial por 20, 30
anos", diz o cardiologista Raimundo Marques do Nascimento.
Não existem estudos sobre o reflexo dessa prática na população,
mas especialistas em bioética supõem que elas podem levar à
prescrição de remédios de eficácia
duvidosa ou mais caros.
"Os casos do Bextra e do Vioxx
[analgésicos e antiinflamatórios
retirados do mercado em razão
do risco de problemas cardiológicos] estão aí para nos mostrar que
toda cautela é pouca", diz o infectologista Caio Rosenthal, da Câmara de Bioética do Cremesp
(conselho de medicina paulista).
Segundo ele, é comum os médicos, especialmente os de cidades
do interior, receberem da indústria farmacêutica convites para
jantares, almoços e viagens. "Até
cruzeiro marítimo já foi feito. Os
médicos ficam subvendidos por
essas pequenas miçangas. Do
ponto de vista ético, isso é deplorável. Mas compreendo que eles
fiquem seduzidos pois muitos vivem em situação de penúria."
Para d'Ávila, há necessidade de
mecanismos mais eficazes de
controle. "É preciso que os conselheiros regionais se empenhem
em conscientizar os médicos dos
Estados a ter uma análise crítica
sobre o viés comercial que existe
nesses convites."
O corregedor conta que já soube
de médicos que receberiam "salários por fora" de laboratórios a título de colaboração pela participação em congressos ou outros
eventos. Porém, não há provas.
O assédio dos laboratórios atingiria também as farmácias, segundo os médicos. Em troca de
vantagens (em dinheiro ou em
produtos), elas repassariam informações do receituário aos laboratórios, que cobram fidelidade do
médico. "São relações espúrias",
resume o médico Marco Segre,
professor de bioética da USP.
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