São Paulo, segunda-feira, 29 de agosto de 2005

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"PAPAGAIOS-CIENTÍFICOS"

Profissionais criticam relação promíscua com laboratórios, calcada em benefícios pessoais

Médicos denunciam favores de laboratórios

CLÁUDIA COLLUCCI
DA REPORTAGEM LOCAL

"É promíscua a relação entre médicos e a indústria farmacêutica. Muitos se transformaram em garotos-propaganda de luxo dos laboratórios." As declarações são do cardiologista Roberto Luiz d'Ávila, diretor-corregedor do CFM (Conselho Federal de Medicina), que tem a missão de julgar as infrações éticas da categoria.
"São papagaios-científicos", emenda o clínico-geral Antonio Carlos Lopes, professor titular da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, que reúne 40 mil profissionais.
O fenômeno não é exclusivo do país, mas, pela primeira vez, médicos brasileiros renomados vêm a público denunciar o lado negro da relação médico e laboratório, que, muitas vezes, estaria calcada mais em benefícios pessoais do que no bem da população.
Lopes, por exemplo, afirma ter sido convidado inúmeras vezes por laboratórios para fazer apresentações favoráveis a determinados remédios. "Nunca aceitei. Mas sei de médicos que recebem R$ 5.000, em média, por apresentação, viagem aérea de primeira classe, hotel cinco estrelas, tudo com direito a acompanhante."
Não há crime na prática, desde que o médico informe, na apresentação, que há um conflito de interesse, já que sua participação está sendo paga pela instituição interessada, conforme determina o CFM e a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
"Ninguém respeita isso. Já cheguei a interromper pelo menos duas mesas-redondas em eventos científicos em razão de conflito de interesse não revelado por parte de certos médicos", afirma Lopes.
Ele revela ainda ter sofrido pressões para publicar artigos científicos financiados por laboratórios em troca da compra de anúncios na revista da sociedade que preside. "Também não aceitei esse tipo de interferência. Tudo o que publicamos passa pelo crivo do conselho editorial." Lopes se nega a fornecer os nomes dos laboratórios por falta de provas.
Nos últimos três anos, vários artigos foram publicados pela imprensa internacional informando que a indústria farmacêutica contrata "escritores fantasmas" para elaborarem artigos científicos favoráveis às suas drogas e, depois, paga cientistas renomados para assiná-los.
Neste ano, o ex-editor do British Medical Journal, Richard Smith, denunciou como os laboratórios manipulam os periódicos científicos com pesquisas que fazem seus remédios parecerem muito melhores do que são.

Assédio
Apesar de reconhecer o problema do assédio, o CFM diz que não consegue punir os médicos pois não há denúncias formais sobre as infrações, sem as quais não há como iniciar um processo disciplinar no conselho, ação que poderia levar à cassação do registro profissional do médico.
"Como muitos se beneficiam dessas vantagens, ninguém denuncia. A maioria dos médicos não vê problema de usufruir de uma "delicadeza" do laboratório. É o que eu chamo de elasticidade moral", afirma d'Ávila.
Segundo d'Ávila e Lopes, o assédio dos laboratórios sobre os médicos ocorre de várias formas, tais como na distribuição de brindes pelos propagandistas nos consultórios, no oferecimento de viagens em congressos nacionais e internacionais e no pagamento de palestras para falar de pesquisas positivas a determinadas drogas.
Os profissionais mais visados seriam aqueles que lidam com doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, e prescrevem remédios de uso continuado. "É um cliente em potencial por 20, 30 anos", diz o cardiologista Raimundo Marques do Nascimento.
Não existem estudos sobre o reflexo dessa prática na população, mas especialistas em bioética supõem que elas podem levar à prescrição de remédios de eficácia duvidosa ou mais caros.
"Os casos do Bextra e do Vioxx [analgésicos e antiinflamatórios retirados do mercado em razão do risco de problemas cardiológicos] estão aí para nos mostrar que toda cautela é pouca", diz o infectologista Caio Rosenthal, da Câmara de Bioética do Cremesp (conselho de medicina paulista).
Segundo ele, é comum os médicos, especialmente os de cidades do interior, receberem da indústria farmacêutica convites para jantares, almoços e viagens. "Até cruzeiro marítimo já foi feito. Os médicos ficam subvendidos por essas pequenas miçangas. Do ponto de vista ético, isso é deplorável. Mas compreendo que eles fiquem seduzidos pois muitos vivem em situação de penúria."
Para d'Ávila, há necessidade de mecanismos mais eficazes de controle. "É preciso que os conselheiros regionais se empenhem em conscientizar os médicos dos Estados a ter uma análise crítica sobre o viés comercial que existe nesses convites."
O corregedor conta que já soube de médicos que receberiam "salários por fora" de laboratórios a título de colaboração pela participação em congressos ou outros eventos. Porém, não há provas.
O assédio dos laboratórios atingiria também as farmácias, segundo os médicos. Em troca de vantagens (em dinheiro ou em produtos), elas repassariam informações do receituário aos laboratórios, que cobram fidelidade do médico. "São relações espúrias", resume o médico Marco Segre, professor de bioética da USP.

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