São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

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Avó criou neta órfã fazendo bicos

DA REPORTAGEM LOCAL

Dez anos após o massacre do Carandiru, familiares de presos mortos por policiais militares dizem ainda sofrer as consequências da tragédia. Pais, viúvas e filhos tentam reestruturar suas vidas e pedem que os culpados pela morte dos 111 sejam punidos.
Celina Aparecida dos Santos, 59, criou sozinha a neta Lineide Batista da Silva, hoje com 18 anos. A jovem ficou órfã de pai quando Mauro Batista da Silva, então com 27 anos, foi morto durante a invasão da Casa de Detenção. "Lineide é filha de pai solteiro, eu nunca conheci ou soube quem era a mãe", conta a avó.
Cerca de dois meses após o massacre, Celina foi demitida. Desempregada e sem parentes na cidade, chegou a morar em uma residência invadida e também numa favela até conseguir uma casa em Guarulhos com dinheiro que recebeu de parentes do interior.
Celina trabalhou como doméstica, mas quase todos os dias pegava carona em caminhões até o lixão de Guarulhos, onde recolhia latas e garrafas para vender nos finais de semana, além de procurar comida. De vez em quando, diz Celina, ela conseguia roupas usadas para vender.
Hoje, ela continua a recolher garrafas e latas pelas ruas. "Também pego comida nos lixos de padarias e supermercados."
Celina diz ter insistido para que Lineide estudasse, mas a garota nunca conseguiu aprender a ler e a escrever. "Se ela tivesse o pai, as coisas seriam diferentes."
Josefa Maria Monteiro, 57, mantém até hoje na parede ao pé da cama um quadro de seu filho José Marcolino Monteiro, 25, morto com um tiro.
Segundo ela, o filho andava com assaltantes e teria sido pressionado pelos amigos a matar o ex-chefe, crime pelo qual foi preso. "Mas ele era um bom menino, sempre que ganhava dinheiro dava metade para mim."

Corpos trocados
A vendedora Maria Salete Cassilha de Carvalho, 50, teve seu filho Cláudio José de Carvalho, 20, morto com dois tiros na cabeça.
De acordo com ela, o corpo apresentado pelo IML não era de Cláudio José. A impressão digital apontava que se tratava de Cláudio, mas Maria Salete negava.
"Ele estava preso fazia dois anos e, como era muito jovem, havia mudado muito". Segundo Maria Salete, ela era a única pessoa da família que sabia como ele estava, pois fazia visitas aos finais de semana. "O queixo e a boca eram bem parecidos, mas o resto e o cabelo eram diferentes."
Mesmo contrariada, Maria Salete realizou o enterro na terça-feira, 6 de outubro de 1992. No dia seguinte, funcionários do IML ligaram avisando que ela estava certa: um outro corpo fora enterrado no lugar de seu filho. "Eu não tinha dinheiro para fazer outro enterro, então eles mesmos fizeram a troca dos corpos."


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