São Paulo, quinta-feira, 29 de novembro de 2007

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PASQUALE CIPRO NETO

"Menos a conhecera, mais a amara?"

Como qualquer tempo verbal, o mais-que-perfeito pode ser empregado com valores diferentes do específico

"TIVERA-OS ENTENDIDO, não dissera que a jovem...". Na semana passada, escrevi essa passagem quando me referi a uma "autoridade" do Pará (que perpetrara a seguinte pérola: "Se ela com certeza dissesse que era de menor, seria um outro procedimento").
Foi tiro e queda. Inúmeros leitores escreveram para questionar o emprego de "dissera" (alguns questionaram também a outra forma do mais-que-perfeito que empreguei, ou seja, "tivera"). Unânimes, os leitores queriam saber se não deveria ter sido escolhida a forma "diria" (ou "teria dito") no lugar de "dissera".
Bem-humorado, um desses leitores perguntou se era provocação minha. De certo modo, sim. Gosto de empregar formas que despertem a curiosidade dos leitores. Um dos papéis dos professores de português é levar ao maior número possível de pessoas fatos de registros lingüísticos raros, eruditos, clássicos etc.
Pois chegamos ao ponto: como qualquer tempo verbal, o mais-que-perfeito pode ser empregado não só com seu valor específico (o de indicar fato passado com relação ao perfeito -e é justamente por isso que se chama "mais-que-perfeito", ou seja, mais velho que o perfeito), mas também com valores "alternativos".
Os valores alternativos mais freqüentes do mais-que-perfeito são dois: o de futuro do pretérito e o de pretérito imperfeito do subjuntivo.
Na monumental obra "Os Lusíadas", de Camões, encontra-se esta conhecida passagem : "E, se mais mundo houvera, lá chegara". As formas "houvera" e "chegara", do mais-que-perfeito, estão por "houvesse" e "chegaria", respectivamente.
Em "O Estrangeiro", antológica canção de Caetano Veloso, encontra-se esta passagem, em que o compositor se refere à Baía de Guanabara: "E eu? Menos a conhecera, mais a amara?". Aqui, Caetano emprega "conhecera" por "conhecesse", e "amara" por "amaria" ("E eu? Menos a conhecesse, mais a amaria?").
Refinado, o poeta de Santo Amaro da Purificação complementa o luxo com a omissão da condicional "se", expediente largamente empregado na linguagem literária ("A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos", escreveu Drummond).
Posto (tudo) isso, voltemos aos meus humildes rabiscos ("Tivera-os entendido, não dissera que a jovem só foi parar numa cela..."), em que empreguei "tivera" no lugar de "tivesse", e "dissera" por "diria" (ou por "teria dito", dependendo da leitura que se faça da passagem).
Antes de reescrever a passagem com as formas "normais", cabe-me explicar uma nuança: se eu tivesse optado por "tivesse", ter-me-ia visto obrigado a explicitar a condicional "se", já que a construção "Tivesse-os entendido" não encontraria abrigo na variedade formal da língua (não ocorre ênclise com o pretérito imperfeito do subjuntivo). Vamos, pois, à frase "normal": "Se os tivesse entendido, não diria (ou "não teria dito') que a jovem só foi parar numa cela masculina...".
E não é que o luminar em tela fez escola? Na última terça, outra autoridade do Pará mostrou que não entende os rudimentos do Direito Penal. O gênio em questão disse que a jovem deve ter algum problema mental, já que em nenhum momento informou às autoridades que é menor. Eta Brasilzão! É isso.


inculta@uol.com.br

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