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PASQUALE CIPRO NETO
"Menos a conhecera, mais a amara?"
Como qualquer tempo verbal, o mais-que-perfeito pode ser empregado com valores diferentes do específico
"TIVERA-OS ENTENDIDO, não
dissera que a jovem...". Na
semana passada, escrevi
essa passagem quando me referi a
uma "autoridade" do Pará (que perpetrara a seguinte pérola: "Se ela
com certeza dissesse que era de menor, seria um outro procedimento").
Foi tiro e queda. Inúmeros leitores escreveram para questionar o
emprego de "dissera" (alguns questionaram também a outra forma do
mais-que-perfeito que empreguei,
ou seja, "tivera"). Unânimes, os leitores queriam saber se não deveria
ter sido escolhida a forma "diria" (ou
"teria dito") no lugar de "dissera".
Bem-humorado, um desses leitores perguntou se era provocação minha. De certo modo, sim. Gosto de
empregar formas que despertem a
curiosidade dos leitores. Um dos papéis dos professores de português é
levar ao maior número possível de
pessoas fatos de registros lingüísticos raros, eruditos, clássicos etc.
Pois chegamos ao ponto: como
qualquer tempo verbal, o mais-que-perfeito pode ser empregado não só
com seu valor específico (o de indicar fato passado com relação ao perfeito -e é justamente por isso que se
chama "mais-que-perfeito", ou seja,
mais velho que o perfeito), mas também com valores "alternativos".
Os valores alternativos mais freqüentes do mais-que-perfeito são
dois: o de futuro do pretérito e o de
pretérito imperfeito do subjuntivo.
Na monumental obra "Os Lusíadas", de Camões, encontra-se esta
conhecida passagem : "E, se mais
mundo houvera, lá chegara". As formas "houvera" e "chegara", do mais-que-perfeito, estão por "houvesse" e
"chegaria", respectivamente.
Em "O Estrangeiro", antológica
canção de Caetano Veloso, encontra-se esta passagem, em que o compositor se refere à Baía de Guanabara: "E eu? Menos a conhecera, mais a
amara?". Aqui, Caetano emprega
"conhecera" por "conhecesse", e
"amara" por "amaria" ("E eu? Menos a conhecesse, mais a amaria?").
Refinado, o poeta de Santo Amaro
da Purificação complementa o luxo
com a omissão da condicional "se",
expediente largamente empregado
na linguagem literária ("A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos
desejos", escreveu Drummond).
Posto (tudo) isso, voltemos aos
meus humildes rabiscos ("Tivera-os
entendido, não dissera que a jovem
só foi parar numa cela..."), em que
empreguei "tivera" no lugar de "tivesse", e "dissera" por "diria" (ou
por "teria dito", dependendo da leitura que se faça da passagem).
Antes de reescrever a passagem
com as formas "normais", cabe-me
explicar uma nuança: se eu tivesse
optado por "tivesse", ter-me-ia visto obrigado a explicitar a condicional "se", já que a construção "Tivesse-os entendido" não encontraria abrigo na variedade formal da
língua (não ocorre ênclise com o
pretérito imperfeito do subjuntivo). Vamos, pois, à frase "normal":
"Se os tivesse entendido, não diria
(ou "não teria dito') que a jovem só
foi parar numa cela masculina...".
E não é que o luminar em tela fez
escola? Na última terça, outra autoridade do Pará mostrou que não
entende os rudimentos do Direito
Penal. O gênio em questão disse
que a jovem deve ter algum problema mental, já que em nenhum momento informou às autoridades
que é menor. Eta Brasilzão! É isso.
inculta@uol.com.br
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