São Paulo, sábado, 29 de novembro de 2008

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Em abrigo improvisado, bedel mantém a disciplina

Desabrigados alojados em escola de Itajaí têm hora certa para comer e dormir

Reportagem acompanhou um dia e uma noite em escola que chegou a receber 700 pessoas nesta semana; ontem restavam apenas 70

VINÍCIUS QUEIROZ GALVÃO
ENVIADO ESPECIAL A ITAJAÍ

Depois de uma semana em abrigos improvisados em escolas públicas, galpões e igrejas, os desalojados da enchente em Itajaí começam a voltar às suas casas para recomeçar a vida.
Todos perderam tudo, e chegaram lá só com o que traziam no corpo para vestir.
A Folha acompanhou dia e noite o cotidiano do abrigo montado no colégio Gaspar da Costa Moraes, em Itajaí.
Às 21h45 de quinta, quando ali havia pouco mais de 150 desabrigados (o local chegou a receber 700 pessoas no começo da semana; ontem à noite restavam 70), o bedel aciona a sirene, sinal de que faltavam 15 minutos para o toque de recolher. Àquela hora, ir a uma das 14 salas de aula que viraram quartos, carteiras escolares afastadas, colchões no chão, era compulsório. E ai daquele que não obedecesse.
Dez minutos além do tempo limite, Marcos, o censor voluntário, dá um grito: "Gente, pro quarto! É hora de recolher.
Apaga as luzes, apaga as luzes, apaga as luzes", ele diz três vezes para o vigia.
O banho no abrigo também é controlado. Primeiro as crianças, depois as mulheres, por último, e se sobrar água, os homens. Todos recebem sabonete, pasta e escova de dente. O xampu, racionado, é distribuído em medidas nas mãos. O tempo de chuveiro é regulado em alguns minutos.
Tudo que os desabrigados recebem ali pode ser levado para casa. Depois da perda total, colchão, cobertor e travesseiro, recebidos de doações, são o pouco que lhes resta.
Agora divididos por famílias, já não há mais alas masculinas e das mulheres como antes.
"No início colocamos mãe e filhos de um lado do prédio, maridos de outro. Mas eles mesmo se procuraram e relaxamos", diz Cleonice Comunello, diretora da escola que acumulou a função de chefe do abrigo.
Separados, só os doentes. Há também três cadeirantes, um cego e um paciente em tratamento de hemodiálise. Todos dizem gostar dali. Recebem café-da-manhã, almoço, lanche da tarde e jantar, tudo com hora marcada. Na quinta, comeram omelete, arroz, salada e uma maçã de sobremesa, à noite. Ontem, o cardápio era arroz-de-carreteiro, canja, couve refogada e algumas frutas.
De manhã, são acordados por um galo. É hora de se levantar. Levados por ônibus fretados, os desabrigados têm o dia inteiro pela frente para limpar a lama e o barro que destruíram suas casas. Voltam no fim da tarde, para tomar banho, comer e dormir.
Só os mais debilitados e as crianças ficam. Elas brincam, fazem gincanas e são entretidas por palhaços. Também podem ler os livros da biblioteca da escola. Televisão, "porque não é educativa", nem pensar.
O aposentado Aparício Napoleón Ferreira, 84, não se lembra, mas sofre de Alzheimer. A mulher, Teresinha de Jesus Chalá Ferreira, 75, é diabética e não enxerga há três anos. Os dois, como a maioria dos desabrigados de Gaspar, foram retirados de um dos bairros mais pobres de Itajaí -o Promorar, também um dos mais atingidos pela enchente.
"O barco dos bombeiros teve de derrubar o muro para entrar em casa e nos apanhar", diz ele, misturando português e espanhol. O casal passou a vida em Livramento (RS), na fronteira com o Uruguai. Só chegou a Itajaí há três anos, trazido pela filha que temia a distância e a doença dos pais.
Eles são os únicos a dormir no corredor porque Chiquinha, a vira-lata, em dois tempos adotada como mascote do abrigo, não podia entrar nos quartos. "Barraram a coitada [a cadela] na porta quando chegamos. Se ela não entrar, eu não entro, morro junto", explicam.
Do outro lado do abrigo está Sulamita Gottardi, 56, cadeirante. Não tem uma perna nem seis dedos das mãos (quatro numa, dois noutra), que perdeu para o lupus, doença degenerativa do sistema imunológico que afeta principalmente as mulheres. "Aqui tenho tudo: café, banho, cama. É como se estivesse em casa", diz.
Quando a diretora explica os quatro pilares do abrigo (comida, limpeza, bem-estar e segurança), um homem interrompe a conversa. "Dá para achar uma bermuda e uma camiseta?" É o gari Neri Ribeiro, 36.
Ele diz que voltou para casa para buscar roupa, mas o armário desmontou ao ser tocado.
Hoje, o abrigo na escola será desmontado e os desabrigados devem ser transferidos para locais perto de onde moravam.
"A vida continua", despede-se o autônomo Mário César Moraes, que, depois da chuva, ficou com a casa. Vazia.

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