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Em abrigo improvisado, bedel mantém a disciplina
Desabrigados alojados em escola de Itajaí têm hora certa para comer e dormir
Reportagem acompanhou um dia e uma noite em escola que chegou a receber 700 pessoas nesta semana; ontem restavam apenas 70
VINÍCIUS QUEIROZ GALVÃO
ENVIADO ESPECIAL A ITAJAÍ
Depois de uma semana em
abrigos improvisados em escolas públicas, galpões e igrejas,
os desalojados da enchente em
Itajaí começam a voltar às suas
casas para recomeçar a vida.
Todos perderam tudo, e chegaram lá só com o que traziam no
corpo para vestir.
A Folha acompanhou dia e
noite o cotidiano do abrigo
montado no colégio Gaspar da
Costa Moraes, em Itajaí.
Às 21h45 de quinta, quando
ali havia pouco mais de 150 desabrigados (o local chegou a receber 700 pessoas no começo
da semana; ontem à noite restavam 70), o bedel aciona a sirene, sinal de que faltavam 15
minutos para o toque de recolher. Àquela hora, ir a uma das
14 salas de aula que viraram
quartos, carteiras escolares
afastadas, colchões no chão,
era compulsório. E ai daquele
que não obedecesse.
Dez minutos além do tempo
limite, Marcos, o censor voluntário, dá um grito: "Gente, pro
quarto! É hora de recolher.
Apaga as luzes, apaga as luzes,
apaga as luzes", ele diz três vezes para o vigia.
O banho no abrigo também é
controlado. Primeiro as crianças, depois as mulheres, por último, e se sobrar água, os homens. Todos recebem sabonete, pasta e escova de dente. O
xampu, racionado, é distribuído em medidas nas mãos. O
tempo de chuveiro é regulado
em alguns minutos.
Tudo que os desabrigados recebem ali pode ser levado para
casa. Depois da perda total, colchão, cobertor e travesseiro,
recebidos de doações, são o
pouco que lhes resta.
Agora divididos por famílias,
já não há mais alas masculinas
e das mulheres como antes.
"No início colocamos mãe e filhos de um lado do prédio, maridos de outro. Mas eles mesmo se procuraram e relaxamos", diz Cleonice Comunello,
diretora da escola que acumulou a função de chefe do abrigo.
Separados, só os doentes. Há
também três cadeirantes, um
cego e um paciente em tratamento de hemodiálise.
Todos dizem gostar dali. Recebem café-da-manhã, almoço,
lanche da tarde e jantar, tudo
com hora marcada. Na quinta,
comeram omelete, arroz, salada e uma maçã de sobremesa, à
noite. Ontem, o cardápio era
arroz-de-carreteiro, canja, couve refogada e algumas frutas.
De manhã, são acordados
por um galo. É hora de se levantar. Levados por ônibus fretados, os desabrigados têm o
dia inteiro pela frente para limpar a lama e o barro que destruíram suas casas. Voltam no
fim da tarde, para tomar banho, comer e dormir.
Só os mais debilitados e as
crianças ficam. Elas brincam,
fazem gincanas e são entretidas por palhaços. Também podem ler os livros da biblioteca
da escola. Televisão, "porque
não é educativa", nem pensar.
O aposentado Aparício Napoleón Ferreira, 84, não se
lembra, mas sofre de Alzheimer. A mulher, Teresinha de
Jesus Chalá Ferreira, 75, é diabética e não enxerga há três
anos. Os dois, como a maioria
dos desabrigados de Gaspar, foram retirados de um dos bairros mais pobres de Itajaí -o
Promorar, também um dos
mais atingidos pela enchente.
"O barco dos bombeiros teve
de derrubar o muro para entrar
em casa e nos apanhar", diz ele,
misturando português e espanhol. O casal passou a vida em
Livramento (RS), na fronteira
com o Uruguai. Só chegou a
Itajaí há três anos, trazido pela
filha que temia a distância e a
doença dos pais.
Eles são os únicos a dormir
no corredor porque Chiquinha,
a vira-lata, em dois tempos
adotada como mascote do abrigo, não podia entrar nos quartos. "Barraram a coitada [a cadela] na porta quando chegamos. Se ela não entrar, eu não
entro, morro junto", explicam.
Do outro lado do abrigo está
Sulamita Gottardi, 56, cadeirante. Não tem uma perna nem
seis dedos das mãos (quatro
numa, dois noutra), que perdeu
para o lupus, doença degenerativa do sistema imunológico
que afeta principalmente as
mulheres. "Aqui tenho tudo:
café, banho, cama. É como se
estivesse em casa", diz.
Quando a diretora explica os
quatro pilares do abrigo (comida, limpeza, bem-estar e segurança), um homem interrompe
a conversa. "Dá para achar uma
bermuda e uma camiseta?" É o
gari Neri Ribeiro, 36.
Ele diz que voltou para casa
para buscar roupa, mas o armário desmontou ao ser tocado.
Hoje, o abrigo na escola será
desmontado e os desabrigados
devem ser transferidos para locais perto de onde moravam.
"A vida continua", despede-se
o autônomo Mário César Moraes, que, depois da chuva, ficou com a casa. Vazia.
Ouça mais relatos sobre a
tragédia em SC
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