São Paulo, domingo, 29 de novembro de 2009

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Bom velhinho dividiu a França do pós-guerra

MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!

Hoje é consenso que Papai Noel não existe de verdade, nem aqui nem na Groenlândia.
Mas nem sempre foi assim.
Sua figura corpulenta, de barbas grisalhas e saco vermelho às costas, já causou muito estrago e chegou a dividir a opinião pública de um país, como lembrou o antropólogo Claude Lévi-Strauss, morto neste mês, no pequeno ensaio "O Suplício do Papai Noel" (Cosac Naify).
Em 1951, a França do pós-guerra, sob impulso do plano Marshall, aos poucos restabelecia sua economia e coesão social. E fazia isso, como toda a Europa Ocidental, sob influência crescente não só do dinheiro, mas dos valores caros aos EUA. Um deles, o Papai Noel.
Lévi-Strauss lembra que antes da guerra era raro ver, no Natal parisiense, árvores enfeitadas, ruas iluminadas ou até a figura do velhinho.
Mas isso mudou rapidamente, a ponto de as igrejas do país, tanto a católica quanto a protestante, defenderem publicamente que o 25 de dezembro era a data para celebrar exclusivamente o nascimento de Jesus -e ninguém mais.
Temendo a invasão cultural dessa figura laica, moveram intensa campanha difamatória contra o bom velhinho. A coisa toda culminou no enforcamento, nas grades que cercavam a catedral de Dijon, de um boneco do dito-cujo. Em seguida, num grande ato de fé ideológico, foi levado à fogueira.

Além da ideologia
Mas a imagem do Papai Noel, relativamente moderna, vai muito além da simples ideologia cultural. Ele simboliza, diz Lévi-Strauss, um mito de iniciação à idade adulta, encontrado até, de formas diferentes, nas sociedades arcaicas.
Seja na França do século 20 ou entre os índios do sudoeste dos EUA, Noel, Santa Claus ou são Nicolau -dependendo de cada cultura- representam uma negociação, em que os adultos "pagam" pelo bom comportamento que as crianças tiveram (ou deveriam ter tido) ao longo do ano.
Já para os pequenos, é o momento de fazerem valer o direito que adquiriram, caso tenham se comportado direitinho, de ganharem carrinhos, bonecas, videogames ou varinhas do Harry Potter.
No final das contas, trata-se de um acerto de contas entre duas gerações.
Acontece que, numa sociedade como a contemporânea, focada no consumo, esse mito ancestral encarnado no Papai Noel sofre um deslocamento.
Sua função primária de mediador das relações sociais é esvaziada, e a função secundária -a de troca de objetos ou "presentes"- fica sozinha em cena.
Daí vem o mal-estar que acomete a todos no Natal: recebemos e damos cada vez mais presentes, mas a simbologia não vem junto no pacote.
Assim, talvez a questão crucial não seja contar ou não às crianças que Papai Noel, bem... não existe. Afinal de contas, a ficção também faz parte do processo de elaboração do conhecimento.
O problema, de verdade, é o de saber o que desejamos "comprar" da criança no Natal: seu amadurecimento ou o nosso sossego. Entre essas duas opções reside a diferença entre transformar o Natal em uma negociação ou uma negociata.


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