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Bom velhinho dividiu a França do pós-guerra
MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!
Hoje é consenso que Papai
Noel não existe de verdade,
nem aqui nem na Groenlândia.
Mas nem sempre foi assim.
Sua figura corpulenta, de
barbas grisalhas e saco vermelho às costas, já causou muito
estrago e chegou a dividir a opinião pública de um país, como
lembrou o antropólogo Claude
Lévi-Strauss, morto neste mês,
no pequeno ensaio "O Suplício
do Papai Noel" (Cosac Naify).
Em 1951, a França do pós-guerra, sob impulso do plano
Marshall, aos poucos restabelecia sua economia e coesão social. E fazia isso, como toda a
Europa Ocidental, sob influência crescente não só do dinheiro, mas dos valores caros aos
EUA. Um deles, o Papai Noel.
Lévi-Strauss lembra que antes da guerra era raro ver, no
Natal parisiense, árvores enfeitadas, ruas iluminadas ou até a
figura do velhinho.
Mas isso mudou rapidamente, a ponto de as igrejas do país,
tanto a católica quanto a protestante, defenderem publicamente que o 25 de dezembro
era a data para celebrar exclusivamente o nascimento de Jesus -e ninguém mais.
Temendo a invasão cultural
dessa figura laica, moveram intensa campanha difamatória
contra o bom velhinho. A coisa
toda culminou no enforcamento, nas grades que cercavam a
catedral de Dijon, de um boneco do dito-cujo. Em seguida,
num grande ato de fé ideológico, foi levado à fogueira.
Além da ideologia
Mas a imagem do Papai Noel,
relativamente moderna, vai
muito além da simples ideologia cultural. Ele simboliza, diz
Lévi-Strauss, um mito de iniciação à idade adulta, encontrado até, de formas diferentes,
nas sociedades arcaicas.
Seja na França do século 20
ou entre os índios do sudoeste
dos EUA, Noel, Santa Claus ou
são Nicolau -dependendo de
cada cultura- representam
uma negociação, em que os
adultos "pagam" pelo bom
comportamento que as crianças tiveram (ou deveriam ter tido) ao longo do ano.
Já para os pequenos, é o momento de fazerem valer o direito que adquiriram, caso tenham se comportado direitinho, de ganharem carrinhos,
bonecas, videogames ou varinhas do Harry Potter.
No final das contas, trata-se
de um acerto de contas entre
duas gerações.
Acontece que, numa sociedade como a contemporânea, focada no consumo, esse mito ancestral encarnado no Papai
Noel sofre um deslocamento.
Sua função primária de mediador das relações sociais é esvaziada, e a função secundária
-a de troca de objetos ou "presentes"- fica sozinha em cena.
Daí vem o mal-estar que acomete a todos no Natal: recebemos e damos cada vez mais presentes, mas a simbologia não
vem junto no pacote.
Assim, talvez a questão crucial não seja contar ou não às
crianças que Papai Noel, bem...
não existe. Afinal de contas, a
ficção também faz parte do
processo de elaboração do conhecimento.
O problema, de verdade, é o
de saber o que desejamos
"comprar" da criança no Natal:
seu amadurecimento ou o nosso sossego. Entre essas duas
opções reside a diferença entre
transformar o Natal em uma
negociação ou uma negociata.
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