São Paulo, domingo, 30 de março de 2008

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DANUZA LEÃO

Difícil felicidade


É uma aflição, um medo de que nada dê certo, que você está sonhando, vai acordar e ver que não é nada daquilo

EXISTEM momentos -raros, é verdade- em que tudo está bem. Bem, não: ótimo. A casa finalmente ficou pronta, os gatos estão com saúde, os filhos bem e felizes, faltam só 15 dias para a viagem marcada há seis meses -e a passagem parcelada já está paga-, a saúde em forma total e, como se não bastasse, uma proposta de trabalho nova e sedutora -e sem ter que deixar o atual trabalho. A vida está tão boa que chega a dar uma agonia. E isso é normal? Não, diria a maioria das pessoas. Sim, afirmam os mais habituados a conviver com as profundezas da alma.
É bem verdade que esses tempos são raros, e normalmente, até bobagens como a máquina de lavar roupa que está com defeito é um estresse. Mas quando eles acontecem são difíceis de suportar. A palavra é essa mesma: suportar.
É uma aflição, um medo de que nada dê certo, que você está sonhando, vai acordar e ver que não é nada daquilo, que a realidade não é assim, que existem problemas de todos os tipos o tempo todo e que nem o direito ao silêncio de sua casa você tem. Quando chega tem que ver os recados da secretária eletrônica, abrir o computador para ver os e-mails, e o mais normal é receber uma notícia que pode não ser péssima, mas será suficiente para perturbar sua santa paz. Que o ar-condicionado do quarto não está funcionando, por exemplo.
Mas tudo isso é normal, tão normal que não chega a causar nenhum abalo maior. Faz parte do dia-a-dia, faz parte de todos os dias, isso sem falar de uma dor de coluna, do brinco que sumiu, do lençol que manchou com água sanitária.
Mas tem aqueles dias maravilhosos em que tudo dá certo, e que o futuro, tudo indica, vai ser melhor ainda do que o presente. É curioso que esses dias nunca têm a ver com um homem maravilhoso que você conheceu na véspera. Esse tipo de encontro não costuma trazer paz, e sim angústia, ansiedade, insegurança, taquicardia, aflição. Não, esses grandes momentos acontecem apenas com nós mesmos, na nossa mais profunda -solidão? Não, solidão não é a palavra certa. É um sentimento de você com você mesmo, que não é compartilhado com nenhum ser humano e que prova que, apesar do que dizem, ninguém precisa de ninguém para ser feliz de verdade. Para ir a um cinema, comer uma pizza, trocar uma idéia sobre as infidelidades públicas dos políticos americanos, até aí se vai. Mas para ser feliz mesmo, para se ser profundamente feliz, não se precisa de ninguém, e o que pode parecer uma tragédia para alguns, é uma liberação para outros.
Não que só você seja feliz o tempo todo, mas existem aqueles momentos em que se é totalmente feliz, e é aí que as coisas se complicam. Como nada é fácil, você começa com a culpa, claro. Como ser feliz com tanta gente sofrendo? E aí começa o medo, o grande medo, aquele de perder a felicidade que está sentindo.
Para isso se apela para tudo: fazer uma aula de ginástica, tomar um tranqüilizante ou não fazer rigorosamente nada e ficar deitado na cama olhando para o teto, só sendo feliz e mais nada. Mas isso não dá porque os pensamentos não deixam, e a vontade é que aconteça alguma coisa que traga você de volta para o mundo imperfeito em que vive; a televisão quebrar já seria o suficiente. Ser infeliz é muito ruim, mas ser feliz é muito difícil.

danuza.leao@uol.com.br


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