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São Paulo, quarta-feira, 30 de abril de 2003

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URBANIDADE

PRAÇA JOÃO MENDES, CORPOS Apenas uma grade ordinária e contudo tão proibida quanto uma fronteira separa a Madonna, na Igreja de São Gonçalo, das profissionais do amor que atuam na frente. O corpo sagrado é pintado, ocupa a abóbada cilíndrica da igreja por todo o comprimento e seu tamanho desproporcional vale a visita. Os corpos profanos, no entanto, ocupam a calçada com garbo desleixado. (VINCENZO SCARPELLINI)


Ninguém é de ninguém

GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA

Gilvan Lino de Araújo nunca tinha cometido um crime, quando, aos 25 anos, quebrou a janela de um carro e furtou "Ninguém É de Ninguém", livro da escritora espírita Zibia Gasparetto -levou junto uma malha usada. Naquele momento, virou mais um personagem de romance de terror urbano.
Preso, acabou numa delegacia da zona norte, sem tempo nem de ler o livro. Uma jovem advogada, Dora Cavalcanti, soube do caso e tentou libertá-lo. Argumentou com o juiz que aquele furto não era motivo para deixar alguém enjaulado. Recebeu o apoio do promotor público, mas o juiz se manteve irredutível.
Poucos dias depois da recusa do juiz, Gilvan Lino morreu, degolado na delegacia, em outubro de 2001: perdeu a vida, mas a advogada, Dora Cavalcanti, formada pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, ganhou uma causa. "Esse caso marcou minha vida, pois vi como a justiça pode ser injusta".
Dora é presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), entidade sem fins lucrativos formada por 86 advogados. O projeto nasceu com a articulação de nomes carimbados da advocacia: Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, José Carlos Dias, ex-ministro, e Arnaldo Malheiros -os três vinculados à história dos direitos humanos na cidade de São Paulo.
Os advogados fazem mutirões nas cadeias e delegacias, estudam caso a caso, garantindo o direito de defesa aos presos ou a correta execução de uma pena. Uma das paisagens paulistanas mais tenebrosas -se não for a mais tenebrosa- é a superlotação das celas nas delegacias.
Há presos que poderiam ser beneficiados com o regime de prisão semi-aberta ou aberta, por exemplo, mas, por omissão do Poder Judiciário, estão trancafiados. "Só queremos que a lei seja cumprida", afirma Dora. Existem também aqueles que só cometeram um furto.
Não é uma tarefa popular defender preso. "Muita gente acha que estamos protegendo bandidos, estimulando a impunidade", lamenta Dora. O instituto tem uma meta pedagógica: ensinar à opinião pública que garantir o direito de defesa é bom para toda a sociedade. "Quando uma pessoa fica desnecessariamente na cadeia, ela volta para a sociedade mais violenta".
Ou nem volta, como Gilvan: é rotina para os advogados do IDDD perderem seus clientes, todos eles mortos na prisão -terra onde, rigorosamente, ninguém é de ninguém.

E-mail - gdimen@uol.com.br


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