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URBANIDADE
PRAÇA JOÃO MENDES, CORPOS Apenas uma grade ordinária e contudo tão proibida quanto uma fronteira separa a Madonna, na Igreja de São Gonçalo, das profissionais do amor que atuam na frente. O corpo sagrado é pintado, ocupa a abóbada cilíndrica da igreja por todo o comprimento e seu tamanho desproporcional vale a visita. Os corpos profanos, no entanto, ocupam a calçada com garbo desleixado.
(VINCENZO SCARPELLINI)
Ninguém é de ninguém
GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA
Gilvan Lino de Araújo
nunca tinha cometido um
crime, quando, aos 25 anos, quebrou a janela de um carro e furtou "Ninguém É de Ninguém",
livro da escritora espírita Zibia
Gasparetto -levou junto uma
malha usada. Naquele momento, virou mais um personagem
de romance de terror urbano.
Preso, acabou numa delegacia
da zona norte, sem tempo nem
de ler o livro. Uma jovem advogada, Dora Cavalcanti, soube do
caso e tentou libertá-lo. Argumentou com o juiz que aquele
furto não era motivo para deixar
alguém enjaulado. Recebeu o
apoio do promotor público, mas
o juiz se manteve irredutível.
Poucos dias depois da recusa
do juiz, Gilvan Lino morreu, degolado na delegacia, em outubro
de 2001: perdeu a vida, mas a advogada, Dora Cavalcanti, formada pela Faculdade de Direito
do Largo São Francisco, ganhou
uma causa. "Esse caso marcou
minha vida, pois vi como a justiça pode ser injusta".
Dora é presidente do Instituto
de Defesa do Direito de Defesa
(IDDD), entidade sem fins lucrativos formada por 86 advogados.
O projeto nasceu com a articulação de nomes carimbados da advocacia: Márcio Thomaz Bastos,
ministro da Justiça, José Carlos
Dias, ex-ministro, e Arnaldo
Malheiros -os três vinculados à
história dos direitos humanos na
cidade de São Paulo.
Os advogados fazem mutirões
nas cadeias e delegacias, estudam caso a caso, garantindo o
direito de defesa aos presos ou a
correta execução de uma pena.
Uma das paisagens paulistanas
mais tenebrosas -se não for a
mais tenebrosa- é a superlotação das celas nas delegacias.
Há presos que poderiam ser
beneficiados com o regime de
prisão semi-aberta ou aberta,
por exemplo, mas, por omissão
do Poder Judiciário, estão trancafiados. "Só queremos que a lei
seja cumprida", afirma Dora.
Existem também aqueles que só
cometeram um furto.
Não é uma tarefa popular defender preso. "Muita gente acha
que estamos protegendo bandidos, estimulando a impunidade", lamenta Dora. O instituto
tem uma meta pedagógica: ensinar à opinião pública que garantir o direito de defesa é bom
para toda a sociedade. "Quando
uma pessoa fica desnecessariamente na cadeia, ela volta para
a sociedade mais violenta".
Ou nem volta, como Gilvan: é
rotina para os advogados do
IDDD perderem seus clientes, todos eles mortos na prisão -terra
onde, rigorosamente, ninguém é
de ninguém.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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