São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DANUZA LEÃO

Uma infância eletrizante

Será que tem alguma graça ser criança hoje em dia? Elas parecem adultos em miniatura; gostam de computadores e de carros, sabem as marcas, os preços, e como se não bastasse, agora sabem também onde se come o melhor sushi da cidade.
Crianças sempre gostaram de participar do mundo dos grandes e ouvir as conversas dos adultos, pescando o que é dito por eles. Mas será que é bom que saibam de tudo, do tio que era rico mas um dia se deu mal e foi preso à razão pela qual os pais estão se separando? Como já passou o saudoso tempo em que se podia dizer "vá para o quarto porque isso é conversa de adulto", eles estão por dentro de tudo que se passa na casa e no mundo, o que às vezes complica.
Como explicar a uma criança o sorriso de prazer com que a soldado americana olha para os presos iraquianos nus, uns em cima dos outros? Como explicar as taras, a perversão e o sadismo a quem ainda não tem 10 anos?
Eu tive a sorte de ser criança numa cidade pequena, e naquela época estávamos mais interessadas nas nossas brincadeiras do que nas conversas sérias (e chatas) de nossos pais.
Meu pai não era pobre, mas eu só tinha dois sapatos: um preto, amarradinho, de ir ao colégio, e outro de usar aos domingos para ir à missa e aos aniversários; o resto do tempo andava descalça. Vestidos eram dois (para poder lavar), bem modestos, e um de domingo, todos feitos por uma tia que tinha jeito para costura. Era assim com todas as meninas, e não tem nada a ver, mas eu lembrei agora que a roupa, depois de lavada, era banhada numa bacia com água e anil. Será que alguém sabe o que é anil?
A missa aos domingos era obrigatória, e a confissão acontecia no sábado à tarde, para comungar na manhã seguinte. E a partir da penitência - nunca mais do que 3 ave-marias e 2 padre-nossos -, era preciso o maior cuidado para não pecar, nem em pensamento. Se acontecesse, a hóstia, se batesse no dente, podia sangrar, olha a inocência.
Quando acabava a missa, íamos visitar algum parente, fazendo hora para o almoço, que nesse dia era mais especial. Tinha, obrigatoriamente, arroz de forno, coberto por pó de rosca e enfeitado com rodelas de ovo cozido, frango assado ou ensopado e às vezes um pernil. Nesse dia não se comia feijão. Os legumes eram poucos, alface zero, e o tomate era raro. Tão raro que, quando se queria dar cor às comidas, se usava urucum, que não tinha gosto de nada mas soltava um vermelhão forte. De sobremesa, pudim, e como era domingo, com uma ameixa.
A geladeira tinha uma bola em cima (era o motor) e ficava na sala, para todo mundo ver que a gente tinha uma.
Eu tinha nove anos quando minha mãe ficou grávida, mas ninguém me explicou nada, e eu estava ocupada demais com as minhas brincadeiras para notar que a barriga dela estava crescendo. Um dia entrou uma senhora na nossa casa, se trancou no quarto com a minha mãe e algumas horas depois saiu de lá com uma menininha enrolada nuns panos, que disseram ser minha irmã.
Como irmã mais velha, eu repetia com ela tudo que haviam feito comigo, e quando ela tinha uns cinco anos, o primeiro dentinho ficou mole. Peguei uma linha do carretel, numa ponta amarrei o dente, na outra a maçaneta da porta, e aí bati a porta com força. O dentinho saiu e no lugar ficaram duas gotinhas de sangue. Minha irmã chorou muito e durante uma semana a família não falou de outra coisa.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


Texto Anterior: Como foi feito o mapa de acesso à universidade
Próximo Texto: Há 50 anos: Aliados libertam posto de Yen Phu
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.