São Paulo, terça-feira, 30 de maio de 2006 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RUBEM ALVES Sobre vacas, bernes e política
ERA UMA vez uma vaca feliz,
saudável e bonita. Mas nem
tudo é perfeito. A vaca tinha
hóspedes. Alguns bernes se hospedaram nela e alimentavam-se da
sua carne. Mas os bernes eram poucos e pequenos... A vaca e os bernes
viviam em paz.
Aconteceu, entretanto, que os bernes começaram a se multiplicar. Os bernes aumentavam, mas a vaca não aumentava, confirmando a lei de Malthus que disse que os alimentos crescem em razão aritmética enquanto as bocas crescem em razão geométrica. O couro da vaca se encheu de calombos que indicavam a presença dos bernes. Mesmo assim a vaca continuava saudável. Ela tinha muita carne de sobra. Foi então que uma coisa inesperada aconteceu: alguns bernes sofreram uma mutação genética e passaram a crescer em tamanho. Foram crescendo, ficando cada vez maiores, e com uma voracidade também cada vez maior. Os vermes magrelas ficaram com inveja dos vermes grandes e trataram de tomar providências para que eles crescessem também. O corpo da pobre vaca passou a ser uma orgia de crescimento. Os bernes só falavam numa coisa: "É preciso crescer!" Mas a vaca não crescia. Ficava do mesmo tamanho. De tanto ser comida pelos bernes, a vaca ficou doente. Emagreceu. Mas os bernes nada sabiam sobre a vaca em que moravam. Para ver a vaca seria preciso que eles estivessem fora da vaca. Mas os bernes estavam dentro da vaca. Assim, não percebiam que sua voracidade estava matando a vaca. A vaca morreu. E com ela morreram os bernes. Fizeram autópsia da vaca. O relatório do legista observou que os bernes mortos eram excepcionalmente grandes, bem nutridos, muitos deles chegando à obesidade. James Lovelock é um cientista que sugeriu que a nossa Terra é um organismo vivo, como a vaca da parábola. Sendo uma coisa viva ela pode ter saúde ou ficar doente. Sua conclusão é que nós, os bernes, já estragamos a Terra, nossa vaca, além de qualquer possibilidade de cura. A Terra está doente. O crescimento das nações está provocando profundas mudanças climáticas irreversíveis: a atmosfera está se aquecendo, as geleiras estão derretendo, a poluição do meio ambiente aumenta, acontecem catástrofes naturais numa intensidade desconhecida. Esses são os sintomas dos estertores da nossa Terra destruída pela voracidade dos bernes. "E o pior está por acontecer", ele diz. "Ecossistemas inteiros serão extintos, e os sobreviventes terão de se adaptar a um clima infernal... (Folha de S.Paulo, caderno Mais, 22/ 01/06, pág. 9). Observando as discussões políticas, não vejo nenhum político que fale sobre a saúde da vaca. Ao contrário, os políticos, tanto de direita quanto de esquerda, só fazem prometer aos bernes um engordamento cada vez maior. Por uma boa razão: os eleitores são os bernes e não a vaca. O candidato que falar sobre a saúde da vaca e o emagrecimento dos bernes com toda certeza perderá a eleição. Quando o que está em jogo é a saúde da vaca, não se pode confiar nos bernes... Texto Anterior: SP reduziu força policial nos "anos PCC" Próximo Texto: Consumo: Usuária diz que dispositivos do Sem Parar não funcionam Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |