São Paulo, quinta-feira, 30 de junho de 2011

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PASQUALE CIPRO NETO

"Quero deixar claro as minhas ideias..."


Negar a existência de sistemas presentes em vários registros linguísticos é negar a existência do ar

UM LEITOR ME pergunta se é correta a frase que está no título desta coluna. Diz ele que a sentença foi proferida recentemente por um conhecido figurão do nosso Congresso.
Em se tratando da língua padrão, a construção é inadequada. Nesse registro, o adjetivo é flexionado no feminino plural, em concordância com o substantivo "ideias", ao qual se refere ("Quero deixar claras as minhas ideias..."). No caso do emprego de um pronome pessoal oblíquo no lugar de "ideias", a flexão é a mesma ("Quero deixá-las claras").
O fato é que o que se verifica no exemplo enviado pelo leitor é mais comum do que se imagina ("Segue anexo as faturas relativas..."; "A diretoria considera inaceitável as atitudes dos torcedores..."; "Será feito mais intervenções das 5h às 7h..."). Os exemplos que acabo de dar são reais, ou seja, não os inventei (tirei-os de textos escritos aqui e ali).
O que se nota nos quatro casos citados? Qual é o traço comum a todos eles? Vamos lá: nos três primeiros exemplos, os adjetivos ("claro", "anexo" e "inaceitável", respectivamente) foram empregados no masculino singular; no quarto, a locução verbal ("será feito") também foi empregada no singular -o particípio ("feito") aparece no masculino.
O leitor já sabe qual é o traço comum? É o processo de "neutralização" do adjetivo e do verbo que vêm antes dos termos aos quais se referem. Essa neutralização consiste em empregar no masculino singular o adjetivo e no singular o verbo quando antepostos. Sem grandes esforços, o leitor pode perceber que esse processo é mais do que sistemático no pronunciamento de brasileiros de diversos níveis de escolaridade ("Chegou as fichas", "Sobrou quatro lápis", "Coube 19 litros", "Falta 14 dias", "Cabe 30 pessoas" etc.).
E como fica isso no padrão culto, na escrita formal? Mantém-se essa tendência, comum na informalidade e na semiformalidade, de neutralização do adjetivo e do verbo antepostos? Um rápido exame em textos formais de diversas áreas basta para que se note que essa tendência se restringe à oralidade e à escrita descuidada ou muito fiel à oralidade.
Em outras palavras, nos registros formais (a começar pelos enunciados das questões de português dos vestibulares de diversos cantos do país), o que se vê mesmo é o emprego do adjetivo e do verbo antepostos em concordância com os termos a que se referem: "Quero deixar claras as minhas ideias...", "Seguem anexas as faturas..."; "A diretoria considera inaceitáveis as atitudes dos..."; "Serão feitas mais intervenções das 5h às 7h..."; "Chegaram as fichas", "Sobraram quatro lápis", "Couberam 19 litros", "Faltam 14 dias", "Cabem 30 pessoas".
Mais uma vez, caro leitor, o que fiz neste espaço é fruto do emprego de conceitos que se estudam em linguística, disciplina que, como já vimos aqui, não discute como deve ser a língua; discute como ela é, como funciona. Negar a existência de determinados sistemas presentes em determinados registros linguísticos é negar a existência do ar, assim como negar a predominância de certos processos no padrão culto é... O nome disso, caro leitor, é demagogia, obscurantismo, populismo.
Um caso que poderia ter entrado na lista é o da expressão "por si só" ("Esses dados da estatística divulgada pelo IBGE falam por si só"). Na língua padrão, o adjetivo "só", que nesse caso está posposto, concorda com "dados": "Esses dados da estatística (...) falam por si sós". É isso.

inculta@uol.com.br


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