São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

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Sem Pandoro, SP perde um marco de sua vida noturna

Reduto de endinheirados e intelectuais, bar fecha as portas depois de 53 anos

Ataques do PCC, em maio, deram o golpe final à crise; clientes como o arquiteto Paulo Mendes da Rocha se despediram do local na terça

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

MARLENE BERGAMO
REPÓRTER-FOTOGRÁFICA

À 1h30 da quarta-feira passada, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, 78, vencedor do Prêmio Pritzker de Arquitetura 2006, a principal distinção mundial da área, levantou-se pela última vez da cadeira confortável, revestida de couro marrom, depois de ter liqüidado o último gole de uísque no copo alto com gelo. Passos firmes, deixou o salão de paredes espelhadas e chão de lajotinhas de cerâmica vermelha, deu um abraço no barman Guilhermino Ribeiro dos Santos, e saiu -sem esperar o apagar do letreiro em neón vermelho, que ficou para trás, na fachada. Para nunca mais.
Ato contínuo, mesas e cadeiras começaram a ser empilhadas, garçons chorando. Desfez-se o Pandoro, ponto de encontro, boteco, "prainha" de endinheirados paulistanos, mas também de intelectuais e curiosos. Aos 53 anos, o Pandoro morreu.
A varanda envidraçada continuava lá, frágil. Era de uma época em que se chegava ao bar a pé, para tomar um chá ou beber alguma coisa mais séria. Nos anos 70, a prefeitura fechava o quarteirão até a avenida Faria Lima. Naquele trecho, a avenida Cidade Jardim virava um bulevar só de pedestres. "Era nossa prainha", lembra um leiloeiro. Hoje, empresas instaladas a poucos metros, na mesma avenida Cidade Jardim, provam que caminhadas caíram em desuso -são especializadas em venda de segurança e blindagem de automóveis.
O gerente Adriano Albergaria de Macedo, 38, informa: "Depois dos ataques do PCC, em maio, o movimento caiu pela metade, e não se recuperou mais". Foi o tiro de misericórdia, depois de uma longa agonia. Ele só ficou sabendo na terça-feira que aquela seria a última noite do Pandoro e do emprego de 35 funcionários como ele -já foram 120.
Na varanda do Pandoro, viu-se strip-tease de dondoca traída pelo marido -"Ah, é assim? E tchum, o vestido já era. Ela sapateava sobre o vestido, enquanto era um tal de garçom, maître, todo mundo querer ajudar a subir a roupa." A lembrança é de Ricardo Gonzaga, 55, 40 anos de Pandoro. Foi lá que ele conheceu a ex-mulher, Rose Koraicho, 45.
Na terça-feira à noite, o casal se reuniu mais uma vez. Levou o filho mais velho, "cria daqui", para se despedir do velho bar. Aproveitaram para sorver os últimos goles do famoso caju amigo, o drinque da casa (leia receita nesta página). "Virou um velório regado a caju amigo", disse Koraicho, solene.
A curadora-chefe da 27ª Bienal de São Paulo, Lisette Lagnado, 45, foi ao Pandoro comemorar a expulsão do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira do Conselho Deliberativo da Fundação Bienal de São Paulo. Ferreira está preso, acusado de gestão fraudulenta e formação de quadrilha, mas se mantinha até terça-feira no prestigioso posto na fundação.
Ao saber que aquela era a última noite do Pandoro, Lagnado lamentou: "Este é o meu bar. Já fecharam o Riviera, já acabaram com o Longchamps. Agora, aqui também? Não é justo."
Lagnado refere-se ao finado bar Riviera, que ficava entre a rua da Consolação e a avenida Paulista, fechado este ano, aos 56 anos, reduto de artistas, intelectuais, estudantes e boêmios dos anos 60 e 70 -todos contra a ditadura militar. A outra referência é o Longchamps, que ficava no "baixo" Augusta, com freqüência idem.
Pelas contas do barman Guilhermino, das suas mãos saía uma média de 300 cajus amigos por dia. Na véspera do Natal de 2005, Guilhermino bateu o recorde: fez 1.025. Em 32 anos, dá a incrível soma de 1.051.200 litros da bebida. Como comida, os best-sellers eram os pasteizinhos, "irresistíveis", segundo Lagnado.
Difícil explicar, assim, o charme do Pandoro. De cabeça, os últimos freqüentadores listaram os "famosos" que viram no boteco. Nas lembranças de Paulo Mendes da Rocha, apareceram Catherine David, diretora artística da 10ª Dokumenta de Kassel (1997), e o senador Severo Gomes (1924-1992), além de "amigos queridos".
Mas também surgiram o locutor Oswaldo Sargentelli (1925-2002), patrono das mulatas, Juca Chaves, Gal Gosta, Maria Bethânia, o apresentador Athayde "simplesmente um luxo" Patrese (1942-2006), o empresário Lázaro Brandão, os políticos Paulo Maluf, Mario Covas, Janio Quadros.
Na terça-feira, o barman Guilhermino ainda ficou com os olhos marejados de lembrar o cantor Antonio Marcos chegando ao bar às 9h -"vinha da balada e já foi pedindo: "me dá um uísque". Ele estava tão triste como eu nunca vi".

Falta de endereços
"Se o Pandoro vai fechar, por onde eu vou sair?" A pergunta foi feita por Paulo Mendes da Rocha, tão logo soube que aquela era a derradeira noite do bar. "Não vai fechar, não. Eu compro", disse. "Esta é uma cidade de merda porque ninguém faz de verdade o que eu falo por brincadeira."
Os últimos a bordo lembravam. "Foi aqui que eu aprendi que anchova e tamarindo são ingredientes do verdadeiro molho inglês. Você sabia disso?" Não, mas é verdade, constatou-se depois da leitura das letras minúsculas do rótulo de um vidro de Lea & Perrins, sobre a mesa. "Só sabe uma coisa dessas quem cultiva o tempo livre. Aqui era o lugar para isso."
"Esse bar foi capaz de valorizar a idéia de tempo livre, porque sempre deu aos seus freqüentadores a certeza de encontrar queridos amigos", disse um ex-locutor que, entretanto, bebia sozinho na última noite.
"Aqui era o bar mais internacional de São Paulo. Era o nosso Algonquin", disse Paulo Mendes da Rocha, referindo-se ao Hotel Algonquin de Nova York, ponto de encontro de intelectuais há 100 anos. "Se Edmund Wilson tivesse passado pela cidade, certamente viria tomar um uísque aqui."
"Era o nosso "Les Deux Magots'", atalhou outro, lembrando-se do bar dos existencialistas parisienses, fundado em 1855 e ainda bem vivo.
"Fechar algum desses locais é fechar um pouco as cidades que os geraram. O que caracteriza uma cidade são seus endereços nítidos. A avenida Cidade Jardim, número 60, onde estamos, era um endereço nítido. Um pouco de São Paulo morre hoje. É uma espécie de apagão", disse o arquiteto da "cidade humana". Onde o senhor vai beber o seu uísque agora? "Não sei. Acho que na calçada."


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