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Sem Pandoro, SP perde um marco de sua vida noturna
Reduto de endinheirados e intelectuais, bar fecha as portas depois de 53 anos
Ataques do PCC, em maio, deram o golpe final à crise; clientes como o arquiteto Paulo Mendes da Rocha se despediram do local na terça
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
MARLENE BERGAMO
REPÓRTER-FOTOGRÁFICA
À 1h30 da quarta-feira passada, o arquiteto Paulo Mendes
da Rocha, 78, vencedor do Prêmio Pritzker de Arquitetura
2006, a principal distinção
mundial da área, levantou-se
pela última vez da cadeira confortável, revestida de couro
marrom, depois de ter liqüidado o último gole de uísque no
copo alto com gelo. Passos firmes, deixou o salão de paredes
espelhadas e chão de lajotinhas
de cerâmica vermelha, deu um
abraço no barman Guilhermino Ribeiro dos Santos, e saiu
-sem esperar o apagar do letreiro em neón vermelho, que
ficou para trás, na fachada. Para
nunca mais.
Ato contínuo, mesas e cadeiras começaram a ser empilhadas, garçons chorando. Desfez-se o Pandoro, ponto de encontro, boteco, "prainha" de endinheirados paulistanos, mas
também de intelectuais e curiosos. Aos 53 anos, o Pandoro
morreu.
A varanda envidraçada continuava lá, frágil. Era de uma
época em que se chegava ao bar
a pé, para tomar um chá ou beber alguma coisa mais séria.
Nos anos 70, a prefeitura fechava o quarteirão até a avenida
Faria Lima. Naquele trecho, a
avenida Cidade Jardim virava
um bulevar só de pedestres.
"Era nossa prainha", lembra
um leiloeiro. Hoje, empresas
instaladas a poucos metros, na
mesma avenida Cidade Jardim,
provam que caminhadas caíram em desuso -são especializadas em venda de segurança e
blindagem de automóveis.
O gerente Adriano Albergaria de Macedo, 38, informa:
"Depois dos ataques do PCC,
em maio, o movimento caiu pela metade, e não se recuperou
mais". Foi o tiro de misericórdia, depois de uma longa agonia. Ele só ficou sabendo na terça-feira que aquela seria a última noite do Pandoro e do emprego de 35 funcionários como
ele -já foram 120.
Na varanda do Pandoro, viu-se strip-tease de dondoca traída pelo marido -"Ah, é assim?
E tchum, o vestido já era. Ela
sapateava sobre o vestido, enquanto era um tal de garçom,
maître, todo mundo querer
ajudar a subir a roupa." A lembrança é de Ricardo Gonzaga,
55, 40 anos de Pandoro. Foi lá
que ele conheceu a ex-mulher,
Rose Koraicho, 45.
Na terça-feira à noite, o casal
se reuniu mais uma vez. Levou
o filho mais velho, "cria daqui",
para se despedir do velho bar.
Aproveitaram para sorver os
últimos goles do famoso caju
amigo, o drinque da casa (leia
receita nesta página). "Virou
um velório regado a caju amigo", disse Koraicho, solene.
A curadora-chefe da 27ª Bienal de São Paulo, Lisette Lagnado, 45, foi ao Pandoro comemorar a expulsão do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira do
Conselho Deliberativo da Fundação Bienal de São Paulo. Ferreira está preso, acusado de
gestão fraudulenta e formação
de quadrilha, mas se mantinha
até terça-feira no prestigioso
posto na fundação.
Ao saber que aquela era a última noite do Pandoro, Lagnado lamentou: "Este é o meu bar.
Já fecharam o Riviera, já acabaram com o Longchamps. Agora,
aqui também? Não é justo."
Lagnado refere-se ao finado
bar Riviera, que ficava entre a
rua da Consolação e a avenida
Paulista, fechado este ano, aos
56 anos, reduto de artistas, intelectuais, estudantes e boêmios dos anos 60 e 70 -todos
contra a ditadura militar. A outra referência é o Longchamps,
que ficava no "baixo" Augusta,
com freqüência idem.
Pelas contas do barman Guilhermino, das suas mãos saía
uma média de 300 cajus amigos
por dia. Na véspera do Natal de
2005, Guilhermino bateu o recorde: fez 1.025. Em 32 anos, dá
a incrível soma de 1.051.200 litros da bebida. Como comida,
os best-sellers eram os pasteizinhos, "irresistíveis", segundo
Lagnado.
Difícil explicar, assim, o charme do Pandoro. De cabeça, os
últimos freqüentadores listaram os "famosos" que viram no
boteco. Nas lembranças de
Paulo Mendes da Rocha, apareceram Catherine David, diretora artística da 10ª Dokumenta
de Kassel (1997), e o senador
Severo Gomes (1924-1992),
além de "amigos queridos".
Mas também surgiram o locutor Oswaldo Sargentelli
(1925-2002), patrono das mulatas, Juca Chaves, Gal Gosta,
Maria Bethânia, o apresentador Athayde "simplesmente
um luxo" Patrese (1942-2006),
o empresário Lázaro Brandão,
os políticos Paulo Maluf, Mario
Covas, Janio Quadros.
Na terça-feira, o barman Guilhermino ainda ficou com os
olhos marejados de lembrar o
cantor Antonio Marcos chegando ao bar às 9h -"vinha da
balada e já foi pedindo: "me dá
um uísque". Ele estava tão triste
como eu nunca vi".
Falta de endereços
"Se o Pandoro vai fechar, por
onde eu vou sair?" A pergunta
foi feita por Paulo Mendes da
Rocha, tão logo soube que
aquela era a derradeira noite do
bar. "Não vai fechar, não. Eu
compro", disse. "Esta é uma cidade de merda porque ninguém faz de verdade o que eu
falo por brincadeira."
Os últimos a bordo lembravam. "Foi aqui que eu aprendi
que anchova e tamarindo são
ingredientes do verdadeiro
molho inglês. Você sabia disso?" Não, mas é verdade, constatou-se depois da leitura das
letras minúsculas do rótulo de
um vidro de Lea & Perrins, sobre a mesa. "Só sabe uma coisa
dessas quem cultiva o tempo livre. Aqui era o lugar para isso."
"Esse bar foi capaz de valorizar a idéia de tempo livre, porque sempre deu aos seus freqüentadores a certeza de encontrar queridos amigos", disse
um ex-locutor que, entretanto,
bebia sozinho na última noite.
"Aqui era o bar mais internacional de São Paulo. Era o nosso
Algonquin", disse Paulo Mendes da Rocha, referindo-se ao
Hotel Algonquin de Nova York,
ponto de encontro de intelectuais há 100 anos. "Se Edmund
Wilson tivesse passado pela cidade, certamente viria tomar
um uísque aqui."
"Era o nosso "Les Deux Magots'", atalhou outro, lembrando-se do bar dos existencialistas parisienses, fundado em
1855 e ainda bem vivo.
"Fechar algum desses locais é
fechar um pouco as cidades que
os geraram. O que caracteriza
uma cidade são seus endereços
nítidos. A avenida Cidade Jardim, número 60, onde estamos,
era um endereço nítido. Um
pouco de São Paulo morre hoje.
É uma espécie de apagão", disse
o arquiteto da "cidade humana". Onde o senhor vai beber o
seu uísque agora? "Não sei.
Acho que na calçada."
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