São Paulo, terça-feira, 30 de agosto de 2011

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JAIRO MARQUES

"Ele não erra nunca"


Cães-guias não servem para engordar carrapato. Eles fazem a vez do sentido daqueles que não veem


Conheci Diesel em um café. Relaxadão embaixo da mesa, mas atento, aguardando a hora do comando, em inglês, para conduzir a dona até a sala de exibição da película. Quem diria que, atualmente, cachorro pode entrar em sala de cinema.
Diante da ordem de ir embora, Diesel não titubeia, não resmunga, não pede a "saideira". Um trabalhador exemplar na função de guia. "Por aqui é mais perto, Diesel", recomenda instintivamente a advogada Thays Martinez, que é cega, ao cão, que quer fazer outro caminho, puxando delicadamente a mestra.
"Ele não erra nunca!", reconhece Thays, depois de saber que, no trajeto mais curto, por onde ela queria sair, havia uma cadeira obstruindo a passagem.
Apesar dos reconhecidos méritos de seu desempenho, apenas cerca de cem cães-guia abanam o rabo em terras brasileiras para pelo menos 1,2 milhão de prejudicados das vistas. De extrema necessidade para quem não vê, esses cachorros sabidos ainda são artigos de luxo. E a história dos peludos que puxam gente ganhou força no Brasil justamente pela "audácia" de Thays, que, lá nos tempos em que o povo dizia "epa", causou um furdúncio revolucionário ao querer, com razão e com direito, entrar ao lado de Boris -seu primeiro cão-guia, antecessor de Diesel- nas estações do metrô, em bares, em táxis, em baladas, em petit comitê.
Cães-guias não servem para engordar carrapato e ceder a cabeça para fazer cafuné na hora da novela. Eles têm a responsabilidade de fazer a vez do sentido dos que não veem. Ajudam a sinalizar degraus, encontram saídas, desviam de obstáculos na rua, indicam caminhos, alertam da aproximação de pessoas, conduzem com segurança o atravessar, garantem mais doçura ao dia a dia dos cegos.
Para chegar a esse grau de capacitação, a cachorrada passa por um longo e dedicado treinamento, que tem o custo de uma charanga em bom estado. As iniciativas de "escolarizar" a bicharada em solo brasileiro existem, mas ainda carecem de mais recurso para os ossinhos dos filhotes e mais compreensão e apoio de todos.
Antes de xingar alguém levando um filhote de golden ao mercado ou barrar um pastor linguarudo em seu restaurante, tenha certeza de que eles estão ali com a nobre missão de entender o prazer das compras e da gastronomia para auxiliar alguém em um futuro próximo. Caso esbarre com um cão já "formado", lembre-se de que ele está em missão. Pode cumprimentá-lo -não se esqueça de que há um cego puxando também-, fazer um carinho, mas nada de muito carnaval.
Depois de dez anos de aventuras e perrengues, Thays lança agora o delicado e apaixonante "Minha Vida com Boris", da Editora Globo, à venda em todo o país. O livro conta em detalhes como um labrador amarelo foi capaz de revolucionar uma vida, inspirar milhares de outras e deixar suas patas marcadas na história da inclusão do país.
A cada página que eu lia, era uma choradinha incontida, um suspiro profundo e uma grande reflexão sobre a vida. Boris, Thays e Diesel conduzem o leitor ora para dentro dos possíveis pensamentos dos cães "cidadãos" e bonachões, ora para a fascinante realidade de um cotidiano às escuras, mas iluminado de emoção, de vontade de seguir adiante e de carisma. "Lambeijocas".

jairo.marques@grupofolha.com.br

assimcomovoce.folha.blog.uol.com.br


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