São Paulo, quinta-feira, 30 de outubro de 2008

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PASQUALE CIPRO NETO

"Meu corpo viraria sol..."


Associado à idéia de condição, o imperfeito do subjuntivo exige o verbo da oração principal no futuro do pretérito

ADORO "PRIMEIROS ERROS", de Kiko Zambianchi, sobretudo na belíssima versão em que ele acompanha os queridos meninos do Capital Inicial. Não há uma vezinha sequer em que eu não me emocione e vá para as estrelas ao ouvi-la.
Comovente, a letra de Zambianchi tem seu ponto alto nas imagens presentes nesta passagem: "Se um dia eu pudesse ver meu passado inteiro e fizesse parar de chover nos primeiros erros, meu corpo viraria sol, minha mente viraria sol, mas só chove, chove...". Eta coisa bonita!
Imagens poéticas à parte, há nos versos um belo exemplo de um tópico que integra os programas de concursos públicos e vestibulares: a correlação verbal, que nada mais é do que a sintonia (de tempo e modo) entre duas ou mais flexões verbais.
Em "Primeiros Erros", há um caso clássico de correlação, que se estabelece entre o pretérito imperfeito do subjuntivo ("pudesse" e "fizesse", de "Se um dia eu pudesse ver meu passado inteiro e fizesse parar de chover") e o futuro do pretérito ("viraria", de "Meu corpo viraria sol, minha mente viraria sol").
Muitas vezes associado à idéia (intemporal) de condição, hipótese, o pretérito imperfeito do subjuntivo exige, nesse caso, que o verbo da oração principal seja flexionado no futuro do pretérito, justamente porque é esse o tempo que expressa um fato futuro em relação a outro que lhe é ou seria anterior.
Tradução: em "Se eu tivesse talento, escreveria versos tão belos como os de Zambianchi", expressa-se algo hipotético, que, caso se consumasse, obedeceria à seqüência "ter talento/escrever versos" (e não à ordem contrária). Entendeu, caro leitor, por que o glorioso futuro do pretérito tem esse nome?
Agora vamos a um ponto importante da questão, que ilustrarei com versos do antológico poema "Se Eu Morresse Amanhã", de Álvares de Azevedo (1831-1852), que foi nosso maior representante do "mal do século". Ouso dizer que vejo alguma ou muita semelhança entre o tom destes e de outros verso de Álvares e os de Zambianchi:
"Não me batera tanto amor no peito / Se eu morresse amanhã! / Mas essa dor da vida que devora / A ânsia de glória, o dolorido afã... / A dor no peito emudecera ao menos / Se eu morresse amanhã".
O caro leitor por acaso estranhou as formas "batera" e "emudecera", presentes nesses versos de Álvares? Pois aí está um dos nós da correlação exigida pelo pretérito imperfeito do subjuntivo (de "morresse"). Como vimos num parágrafo anterior, nesse caso a correlação é feita com o futuro do pretérito, tempo que, nos versos de Álvares de Azevedo, é "representado" pelas flexões "batera" e "emudecera", que, formalmente, são do mais-que-perfeito do indicativo e correspondem, respectivamente, a "bateria" e "emudeceria".
Como assim? Um tempo verbal no lugar de outro? E como não?! O futuro do pretérito pode ser representado pelo mais-que-perfeito ("E eu, menos a conhecera, mais a amara?", de "O Estrangeiro", de Caetano Veloso) ou pelo imperfeito do indicativo, o que é comum na linguagem oral, mas também ocorre em outros registros ("Se soubesses como eu gosto / Do teu cheiro, teu jeito de flor / Não negavas um beijinho / A quem anda perdido de amor", da memorável "Falando de Amor", de Tom Jobim). E viva a língua portuguesa! É isso.

inculta@uol.com.br


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