São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

"Voz palpitando e que arranque"

"Não deixarei de mim nenhum canto radioso / uma voz matinal palpitando na bruma / e que arranque..."

COM A DEVIDA licença do leitor, vou continuar "explorando" Drummond, cujos escritos foram o ponto de partida das últimas colunas. Salvo engano, citei trechos de "Um Boi Vê os Homens", "No Meio do Caminho" e "Legado".
O primeiro dos tercetos do soneto "Legado" é este: "Não deixarei de mim nenhum canto radioso, / uma voz matinal palpitando na bruma / e que arranque de alguém seu mais secreto espinho". Releia o trecho, caro leitor, e note que o substantivo "voz" é modificado por três elementos. Referem-se a essa voz o adjetivo "matinal" e as formas verbais "palpitando", do gerúndio, e "arranque", do presente do subjuntivo.
Como você pôde notar, o poeta se valeu de diferentes recursos morfossintáticos para caracterizar a "voz" de que fala. Num primeiro momento, Drummond emprega o adjetivo "matinal", semanticamente equivalente à locução "da manhã" ("voz matinal" = "voz da manhã").
Em seguida, o poeta emprega duas flexões verbais ("palpitando" e "arranque") de natureza distinta. Note que o "e" de "uma voz matinal palpitando na bruma e que arranque.." coordena dois atributos dessa "voz" (voz palpitando e voz que arranque). Como se sabe, "palpitando" é o gerúndio de "palpitar". Como também se sabe, o gerúndio é uma das formas nominais do verbo (as outras são o infinitivo -"palpitar"- e o particípio - "palpitado").
O "Aurélio" define as formas nominais como aquelas às quais "faltam certas características essenciais do verbo, visto que não têm função exclusivamente verbal". De fato, essa formas não têm marca de tempo, modo, pessoa etc. Em "voz palpitando", o gerúndio caracteriza "voz" e lhe atribui um processo em plena execução, semelhante ao que se vê, por exemplo, em "Eu vi o menino correndo / Eu vi o tempo brincando ao redor do caminho daquele menino". O detalhe é que, no soneto de Drummond, há um não-processo, já que o eu do poema afirma categoricamente que não legará essa voz.
Voltemos aos atributos "verbais" da "voz matinal". Depois do gerúndio, Drummond se vale do subjuntivo ("que arranque"), que é o modo do hipotético, do irreal, do desejado. Com "voz matinal que arranque de alguém seu mais secreto espinho", o poeta põe no plano do hipotético o que é expresso por "arrancar". "Uma voz que arranque" equivale a "uma voz que seja capaz de arrancar". O contexto nos mostra que há aí outro não-processo.
O gerúndio de Drummond me obriga a voltar ao velho tema do gerundismo, que tanta confusão (e tantas declarações precipitadas) tem provocado. É um tal de achar e dizer que o gerúndio é sempre um mal, que não existe a construção "vou (vamos/ vão) estar + gerúndio", que as empresas de "call center" devem caçar (e cassar) os funcionários que usam o gerúndio etc.
Não é bem assim. Uma coisa é dizer "Nessa hora ele vai estar dormindo"; outra é dizer "Já vou estar transferindo a ligação". Há uma bela diferença entre os processos expressos por "estar dormindo" e "estar transferindo", não? Então chega de estar transferindo ligações, de estar remarcando consultas, de estar adiando reuniões e de estar torrando a paciência. É isso.


inculta@uol.com.br

Texto Anterior: Kassab adia lei contra poluição visual
Próximo Texto: Trânsito: Inauguração de árvore de Natal desvia trânsito no Ibirapuera
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.