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PASQUALE CIPRO NETO
"Voz palpitando e que arranque"
"Não deixarei de mim nenhum canto radioso / uma voz matinal palpitando na bruma / e que arranque..."
COM A DEVIDA licença do leitor,
vou continuar "explorando"
Drummond, cujos escritos
foram o ponto de partida das últimas colunas. Salvo engano, citei trechos de "Um Boi Vê os Homens",
"No Meio do Caminho" e "Legado".
O primeiro dos tercetos do soneto
"Legado" é este: "Não deixarei de
mim nenhum canto radioso, / uma
voz matinal palpitando na bruma / e
que arranque de alguém seu mais
secreto espinho". Releia o trecho,
caro leitor, e note que o substantivo
"voz" é modificado por três elementos. Referem-se a essa voz o adjetivo
"matinal" e as formas verbais "palpitando", do gerúndio, e "arranque",
do presente do subjuntivo.
Como você pôde notar, o poeta se
valeu de diferentes recursos morfossintáticos para caracterizar a
"voz" de que fala. Num primeiro
momento, Drummond emprega o
adjetivo "matinal", semanticamente
equivalente à locução "da manhã"
("voz matinal" = "voz da manhã").
Em seguida, o poeta emprega duas
flexões verbais ("palpitando" e "arranque") de natureza distinta. Note
que o "e" de "uma voz matinal palpitando na bruma e que arranque.."
coordena dois atributos dessa
"voz" (voz palpitando e voz que arranque). Como se sabe, "palpitando" é o gerúndio de "palpitar". Como também se sabe, o gerúndio é
uma das formas nominais do verbo
(as outras são o infinitivo -"palpitar"- e o particípio - "palpitado").
O "Aurélio" define as formas nominais como aquelas às quais "faltam certas características essenciais do verbo, visto que não têm
função exclusivamente verbal". De
fato, essa formas não têm marca de
tempo, modo, pessoa etc. Em "voz
palpitando", o gerúndio caracteriza "voz" e lhe atribui um processo
em plena execução, semelhante ao
que se vê, por exemplo, em "Eu vi o
menino correndo / Eu vi o tempo
brincando ao redor do caminho daquele menino". O detalhe é que, no
soneto de Drummond, há um não-processo, já que o eu do poema
afirma categoricamente que não
legará essa voz.
Voltemos aos atributos "verbais"
da "voz matinal". Depois do gerúndio, Drummond se vale do subjuntivo ("que arranque"), que é o modo do hipotético, do irreal, do desejado. Com "voz matinal que arranque de alguém seu mais secreto espinho", o poeta põe no plano do hipotético o que é expresso por "arrancar". "Uma voz que arranque"
equivale a "uma voz que seja capaz
de arrancar". O contexto nos mostra que há aí outro não-processo.
O gerúndio de Drummond me
obriga a voltar ao velho tema do gerundismo, que tanta confusão (e
tantas declarações precipitadas)
tem provocado. É um tal de achar e
dizer que o gerúndio é sempre um
mal, que não existe a construção
"vou (vamos/ vão) estar + gerúndio", que as empresas de "call center" devem caçar (e cassar) os funcionários que usam o gerúndio etc.
Não é bem assim. Uma coisa é dizer "Nessa hora ele vai estar dormindo"; outra é dizer "Já vou estar
transferindo a ligação". Há uma
bela diferença entre os processos
expressos por "estar dormindo" e
"estar transferindo", não? Então
chega de estar transferindo ligações, de estar remarcando consultas, de estar adiando reuniões e de
estar torrando a paciência. É isso.
inculta@uol.com.br
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