São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GILBERTO DIMENSTEIN

O que você não vai ser quando crescer?


Não é de admirar que 55% das vagas de pedagogia e das licenciaturas não sejam preenchidas no Brasil


QUEM se depara com Mário Gatica, óculos escuros, terno preto, alto, musculoso, lutador de artes marciais, cuidando da segurança de uma casa noturna da rua Augusta, jamais poderia imaginá-lo como professor de filosofia de escola pública. "Gostaria de apenas dar aulas", conta -apesar de, algumas vezes, ele se sentir mais vulnerável fisicamente dentro de uma escola do que evitando brigas ou assaltos na madrugada.
O magistério é seu grande projeto desde a adolescência, mas Gatica se vê obrigado a complementar sua renda na noite. Na condição de temporário, ele passou na prova de conhecimentos aplicada pela rede estadual de São Paulo: 40% dos candidatos foram reprovados, mesmo com o benefício de usar o tempo de serviço como parte da nota.
Muitas gorjetas superam o que ele recebe por hora em sala de aula -o que acabou interessando também a colegas da escola. Professoras pediram um bico de garçonete.
Mesmo que não fosse dublê de segurança e professor, Gatica, que se graduou em história e está no último ano de uma faculdade de filosofia, já seria uma raridade. É o que se vê num alarmante levantamento inédito com jovens brasileiros sobre os desejos profissionais.

 


Idealizada pela Fundação Victor Civita e realizada pela Fundação Carlos Chagas, a pesquisa integra um relatório sobre a atratividade da carreira do professor. As entrevistas foram focadas apenas em jovens que estão concluindo o ensino médio e decidindo sua carreira: apenas 2% deles querem ser professores.
Entre os que estão nas escolas privadas, a taxa cai para próximo de zero. Suas opções são, pela ordem, direito, engenharia e medicina.
Um terço dos alunos até pensou em ser professor, mas desistiu pelos seguintes motivos: 1) falta de valorização social; 2) salários baixos; e 3) rotina desgastante. É o que se traduz na diferença entre a gorjeta que Gatica recebe como segurança e o valor da hora-aula.

 


Note-se que a pesquisa não pergunta especificamente se ele gostaria de ser professor de uma escola pública -se fosse assim, o resultado seria ainda pior.
Não é de admirar, portanto, que 55% das vagas de pedagogia e licenciatura não sejam preenchidas. Nem que 40% dos professores temporários da rede paulista tenham sido reprovados -nem que o governo paulista, por falta de alternativa, seja obrigado a mantê-los dando aula. Há no país um deficit de 700 mil professores no ensino médio e nos anos finais do fundamental.
É de mais de 35% a taxa de evasão nos cursos que formam professores.

 


A pior notícia, porém, é a seguinte: os futuros professores são recrutados entre os alunos com as piores notas no ensino.
Não consigo ver informação mais alarmante para uma nação do que o fato de que se recrutam entre os piores quem vai cuidar da cabeça das crianças e dos adolescentes. Entende-se por que muitos cursos de reciclagem não funcionam bem -ou por que os alunos saem da escola sem saber ler e escrever direito.
Também se entende por que, em muitos casos, exista pouca diferença entre escolas públicas e privadas.
Como se não bastassem as deficiências de formação, eles vão trabalhar num ambiente hostil e violento, com salas lotadas e famílias omissas.

 


Há fatos novos interessantes. Novas normas de crédito estudantil garantem gratuidade a quem cursar um curso de licenciatura ou de pedagogia; a contrapartida é ir para uma escola pública.
Na semana passada, professores paulistas se submeteram a uma prova que garantirá a parte deles o aumento do salário, não só com base no tempo de serviço, mas em boas notas. Já existe em São Paulo o bônus a partir do desempenho dos alunos e a obrigatoriedade de se passar por um curso -mesmo aos aprovados em concurso.
Aumenta a oferta de cursos a distância oferecidos pelas melhores universidades.

 


Mas, pelo tamanho do problema, é ainda pouco e vai exigir o melhor da inteligência da elite política -inteligência para, por exemplo, usar os recursos digitais, criar espaços educativos nas cidades, integrar os meios de comunicação ao aprendizado.
Daí que a principal questão social brasileira seja colocar a resposta "professor" quando alguém perguntar aos jovens coisas do tipo "o que-você-vai-ser-quando-crescer?".

 


PS - O relatório é um dos documentos mais profundos que já li sobre a carreira de professor no Brasil. Leitura obrigatória -coloquei a íntegra no site do Catraca Livre (www.catracalivre.com.br).


Texto Anterior: Estreia no colégio é dia de mães aflitas e pais paparazzi
Próximo Texto: Ilhabela: 39% da taxa cobrada de turista vai para empresa que cobra taxa
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.