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FAMÍLIA ARCO-ÍRIS
Decisões da Justiça reconhecendo uniões 'fora-da-lei' favorecem o cerscimento de adoções por homossexuais
Pais gays criam filhos sem preconceito
AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL
Quem observa os cinco jogando
cartas nas noites de sexta ou pescando aos sábados acha que eles
formam uma família feliz. Eles dizem que é isso mesmo.
A família, no caso, é formada
por um casal de lésbicas, dois
adolescentes e uma menina. Nicole é companheira de Flávia, que
vive com o filho Henrique e tem a
guarda da neta Rita. Nicole "adotou" o sobrinho Thiago. As duas
"mães" revezam as idas às reuniões de pais da escola.
Em Santa Luzia, na Grande Belo
Horizonte, a rua Beija-Flor inteira
conhece Yasmin, 3, que vive com
o pai e o namorado do pai, o transexual "Loirinho". O caso é inédito porque a Justiça manteve a
guarda para o pai fazendo constar
que ele vive um casamento gay.
Com as devidas variantes, eles
formam famílias homossexuais
-ou famílias arco-íris, símbolo
da diversidade adotado pelo movimento homossexual. Embora
não haja estatísticas a respeito, as
famílias alternativas vêm crescendo em número e visibilidade.
Se são felizes na aparência dos
seus cotidianos, casamentos homossexuais continuam discriminados, negados pela lei, e seus integrantes desprotegidos. Seus direitos, quando reconhecidos, o
são pela via da Justiça, como vem
ocorrendo nos dois últimos anos.
O tema saiu dos guetos para o
debate público quando Eugênia, a
companheira de Cássia Eller, conseguiu na Justiça o direito da
guarda de Chicão, filho da cantora morta no final do ano. A Justiça
considerou que Eugênia ocupava
o papel de mãe e tinha o direito à
guarda do menino.
Vara da família
Dois anos atrás, o Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul adotou um procedimento que mudou o olhar sobre as ações envolvendo homossexuais. Mesmo
quando se trata de partilha de
bens, a competência passa a ser
das varas de família, não mais das
varas cíveis, como sempre foi.
O que antes a Justiça via como
uma divisão de bens entre as duas
partes, agora é visto como direito
de família. Significa que, quando
um morre ou rompe a relação, o
outro terá direito à pensão e à herança, exatamente como numa
família heterossexual.
"A vara da família considera
que há entre as duas partes uma
relação de afeto; o patrimônio é
decorrência dessa relação", diz
Maria Berenice Dias, desembargadora do TJ do Rio Grande do
Sul e presidente da 7ª Câmara Cível que julga direito de família.
Maria Berenice, 54, três filhos, diz
que o reconhecimento da família
homossexual está acontecendo
pelas decisões judiciais, assim como ocorreu com as relações fora
do casamento. "A Justiça pode
mudar mais rapidamente que o
legislador. Só espero que, no caso
da família homossexual, a mudança não demore tanto", afirma.
A juíza é autora do livro "União
Homossexual: o Preconceito e a
Justiça" (Livraria do Advogado).
Foi a câmara presidida por Maria Berenice que, em março do
ano passado, reconheceu o direito
de ser meeiro a um homossexual
que mantinha relação estável com
um companheiro. Pelo direito de
família, o meeiro tem direito aos
bens do companheiro. A decisão,
inédita no país, impediu que a filha do parceiro, diante da morte
do pai, obtivesse na Justiça o direito de ficar com toda a herança.
"O que ocorreu foi o reconhecimento da família pelos vínculos
de afeto", diz a desembargadora.
"Por aquela decisão, o conceito de
família independe de casamento,
opção sexual ou de que haja uma
finalidade procriativa."
Além da decisão gaúcha, da
guarda de Chicão, no Rio, e de
Yasmin, em Minas, um quarto caso avançou no reconhecimento
da "família homossexual". Em
abril do ano passado, o Tribunal
de Justiça da Bahia decidiu pela
partilha de bens entre duas lésbicas que viveram juntas por cinco
anos. Na separação, a que era dona do apartamento se negava a dividir o bem com a outra. "Como
no Brasil não existe uma legislação para a divisão de bens entre
homossexuais, nós nos baseamos
na lei que rege o casamento tradicional", disse na época o desembargador Mário Albia.
Para muitos casais homossexuais, a "família" se completa
com filhos adotivos ou a guarda
de crianças ou adolescentes -assim como na família heterossexual a prole completa o casal.
Para as lésbicas, quando não
trazem filhos de casamentos anteriores, valem as inseminações
"caseiras" ou a "ajuda" de amigos. Aos gays, se já não têm filhos
biológicos, o caminho mais frequente é a adoção ou a guarda de
crianças. Estima-se, nos EUA, que
20% das crianças adotadas estejam com homossexuais.
Adoção
Pela lei brasileira, todo maior de
21 anos, casado ou solteiro, pode
adotar, desde que se comprove as
vantagens para a criança.
A adoção é decidida por um juiz
com base no parecer de uma equipe de psicólogos e assistentes sociais que entrevista e visita os candidatos à adoção. O fato de ser homossexual e de viver com companheiro não deve pesar na decisão,
embora isso possa ocorrer. "A lei
pune qualquer discriminação",
diz o juiz Siro Darlan, 51, quatro
filhos, titular da Vara da Infância
e da Juventude do Rio de Janeiro.
Segundo ele, o juizado já deferiu
cerca de 20 adoções por "pessoas
com preferência sexual diferente
dos padrões", sem contar as que
não declararam suas orientações
sexuais. Para o juiz, a "lei brasileira já facilita a adoção": o que deve
mudar "é a forma preconceituosa
com que as pessoa ainda vêem o
instituto da adoção".
O juiz Rodrigo Lobato Junqueira Enout, 47, três filhos, presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude, lembra que a adoção não
depende apenas dos requisitos legais. "É preciso considerar a adequação da pessoa ao exercício das
funções parentais", diz.
A lei não contempla a adoção
por dois homens ou duas mulheres. Criada pelo casal homossexual, a criança só terá vínculos legais com aquele que a adotou.
Dar ao casal homossexual o
mesmo status de família vai demorar. O projeto de lei que trata
da "parceria civil registrada entre
pessoas do mesmo sexo", de autoria de Marta Suplicy com substitutivo de Roberto Jefferson, visa
proteger os direitos à propriedade
de duas pessoas do mesmo sexo.
Empacado desde 1995, o projeto
veda toda "disposição sobre a
adoção, tutela ou guarda em conjunto, mesmo que filhos de um
dos parceiros".
"O projeto já está superado porque não considera que há uma relação afetiva entre as partes", diz
Eduardo Piza Gomes de Mello, 41,
advogado e um dos autores do
texto do projeto de parceria civil
registrada. Mesmo limitado, Piza
considera que o projeto é o passo
possível neste momento.
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