São Paulo, quinta-feira, 31 de agosto de 2006

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PASQUALE CIPRO NETO

"Reformas estruturantes"



Não é pela presença ou pela ausência nos dicionários que se pode decretar a (in)existência de uma palavra

NA ÚLTIMA TERÇA-FEIRA, o candidato do PSDB à presidência da República, Geraldo Alckmin, disse que "o Brasil, se não fizer reformas estruturantes, não vai melhorar a questão tributária". Em poucos minutos, a declaração estava nas primeiras páginas da internet. Em quase todas, a palavra "estruturantes" aparecia entre aspas, o que poderia sugerir alguma idéia de estranheza ou reprovação.
Não faltou quem comparasse Alckmin ao ex-ministro collorido Rogério Magri, que um dia disse que seu chefe era imexível. Até então, o adjetivo "imexível" não tinha registro nos dicionários, porque não era usado ou não era usado o bastante para que o registro se justificasse.
Pois é justamente aí que entra a pergunta: só existem as palavras que estão nos dicionários? É claro que não. O processo é inverso, ou seja, o dicionário funciona como um cartório da língua, mas, como é mais lento do que ela, está sempre atrasado.
No caso de "imexível", ocorre um processo mais do que comum na língua: o acréscimo do sufixo "-vel" (de origem latina), formador de adjetivos que contêm o sentido de "passível de praticar ou sofrer determinada ação" ("legível" é o que pode ser lido; "sensível" é aquele que sente ou o que pode ser sentido"). "Mexível" significa "(em) que se pode mexer"; "imexível" corresponde a "(em) que não se pode mexer". O "pecado" de Magri foi ter usado um termo formado de acordo com os cânones da língua, mas falto de uso, de registro. E o adjetivo de Alckmin ("estruturantes")? Quem consultou o "Aurélio" (de 99) não encontrou o vocábulo, que está no "Houaiss" (de 2001) e no "Vocabulário Ortográfico". Se você não se esqueceu do que afirmei há pouco, já sabe o que vou dizer: não é pela presença ou pela ausência nos dicionários que se pode decretar a (in)existência de um vocábulo.
O termo "estruturante" também é formado de acordo com os cânones da língua: há nele o sufixo "-nte", formador de adjetivos e substantivos com idéia de "agente, ação" ("crente" é o que crê; "seguinte" é o que segue). No latim, a terminação de que se origina o sufixo "-nte" forma o particípio presente, que certamente vem à mente de quem na escola ouve falar do particípio passado ("perdoado", "sofrido", "redimido").
Não é preciso recorrer a dicionários para deduzir que "estruturante" significa "aquilo ou aquele que estrutura" ou "que favorece ou determina a estruturação", como se vê no "Houaiss". Se Alckmin não se enganou, ou seja, se de fato quis dizer "estruturantes" (e não "estruturais"), afirmou que as reformas (no quê?) que julga necessárias vão criar estruturas (ou favorecer a criação delas), o que parece diferente de reformar as estruturas já existentes. É mais ou menos como a diferença entre reformar e construir uma casa. No adjetivo "estrutural", encontra-se o sufixo "-al" (também latino, formador de substantivos e adjetivos), que indica diversas idéias: de pertinência, de relação, de coleção, de quantidade etc. "Estrutural" é relativo à estrutura, assim como "abdominal" é relativo ao abdome. Moral da história, caro leitor: mais importante do que saber se um termo "existe" é dominar os processos de formação dos vocábulos, relacionar o significado de seus elementos formadores e, por conseguinte, deduzir o que significa a palavra. É isso.

inculta@uol.com.br


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