São Paulo, segunda-feira, 31 de outubro de 2011

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BICHOS

JAIME SPITZCOVSKY - jaimespitz@uol.com.br

Entre latidos e chororô


Li um texto que dizia que os veterinários deviam resignar-se com sua remuneração espartana


Minha mulher formou-se em veterinária, com especialização em equinos. Antes de qualquer acusação de um interesse escuso, orçamentário, para me enredar com ela, aviso que minha fauna doméstica não inclui cavalos. Convivem cães, furões, peixes, coelhos e tartaruga tigre d'água.
Anuncio também minha sociedade afetiva em nome da transparência. Para que não me acusem de advogar em causa própria, adianto que a reflexão surgiu antes do enlace emocional. O convívio com ela e com seus colegas de profissão, no entanto, fez-me aprofundar a impressão e tornar-me um ouvido mais constante para as agruras veterinárias.
Por conta da constante convivência com bichos de estimação, tornei-me figurinha carimbada em consultórios veterinários, levado por questões mais prosaicas, como uma vacina ou uma castração, ou por desafios mais complexos, como a suspeita de que meus samoiedas sofressem, familiarmente, de uma doença autoimune complicada, lúpus eritematoso discoide. O diagnóstico simultâneo nos seis cães, para meu alívio, não se confirmou.
Certa feita, enquanto aguardava o início da consulta, passei a folhear uma publicação dirigida a profissionais da veterinária. Deparei-me com um texto cujo tema nunca me saiu da cabeça: o autor tentava explicar aos colegas como se resignar diante de espartanas remunerações oferecidas no mercado de trabalho. Em outras palavras, sustentava que ser veterinário corresponderia a um sacerdócio acompanhado pelo desprendimento em relação a bens materiais. Curta seus pacientes, mas encolha seus impulsos consumistas.
Carrego quase sempre minha filha, hoje com nove anos, às consultas veterinárias. Quando ela abre a boca para ventilar o desejo de tornar-se veterinária, a censura dos profissionais desaba de forma frequente e quase imediata. "Ah, não faça isso, não vale a pena", desponta como uma das sentenças mais ouvidas.
Semana passada, fui com minha mulher levar o mais novo integrante da família, Boris, um dogue alemão com quatro meses de vida, a uma consulta. A profissional que nos recebeu era colega de turma de minha mulher, e logo engataram um dueto para rastrear o destino dos seus amigos de faculdade. Estimaram que cerca de metade havia abandonado a carreira, quase sempre sob o mesmo argumento: busca por uma remuneração mais polpuda.
Obviamente não se trata de generalizar. Há, com segurança, veterinários muito bem recompensados. Mas confesso ficar perplexo diante de tanto chororô.
Na condição de ávido consumidor de produtos e de notícias sobre o setor, leio amiúde a respeito da explosão do mercado pet no Brasil. Encarno uma testemunha da melhoria, nos últimos anos, na qualidade do atendimento veterinário a nossos animais de estimação, por exemplo, com investimentos em equipamentos e laboratórios de última geração. Entretanto, fico intrigado porque a mesma maré otimista não atinge os vários veterinários mergulhados em inquietude e descontentamento. Quem pesquisa uma vacina para curar os profissionais mordidos pela decepção financeira?


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