São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2007

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Karine Xavier / Folha Imagem
Paulo Sérgio, 39, e Ilda Paiva, 35, com os filhos Iasmin, 6 e Pedro, 2; ela deixou o trabalho para cuidar das crianças
SÃO PAULO - Paulo Sérgio, 39, e Ilda Paiva, 35, com os filhos Iasmin, 6 e Pedro, 2; ela deixou o trabalho para cuidar das crianças

Fernando Canzian

Homem paga em cash; mulher em jornada

As contas ficam com eles, e elas cuidam de todo o resto; participação dos pais no cuidado com os filhos nunca supera 22%

É corretíssima a percepção de que as mulheres são as maiores vítimas em uma relação familiar quando o assunto é cuidar dos filhos. A dupla jornada é uma realidade para elas em todos os pontos relativos ao cuidado básico da prole: de ir a reuniões de pais e mestres a levar os filhos ao dentista ou à escola e cuidar deles quando ficam doentes. O único atenuante para os homens é que, se não se sacrificam com esforço e atenção, entram bem mais pesadamente com o bolso na divisão de responsabilidades. A pesquisa Datafolha mostra que são eles os que contribuem mais para o pagamento da maior parte das contas da casa. Entre os homens, 49% disseram arcar com a maior parcela das despesas. Entre as mulheres, esse percentual cai para 29%.
Quanto maior a faixa etária –e, conseqüentemente, quanto mais velhos vão ficando os filhos–, mais os homens têm essa responsabilidade financeira. Entre pessoas com idades entre 26 e 40 anos, 55% dos homens afirmam contribuir mais, contra 28% das mulheres. Mas a vantagem relativa dos homens para eventualmente responderem a queixas sobre a falta de participação no cuidado com a família fica restrita ao dinheiro. Quando o investimento não é financeiro, mas pessoal, educacional e “preocupacional”, a conta cai em cheio no colo feminino.
Alguns dos exemplos aferidos na pesquisa mostram que as mulheres estão sempre à frente dos homens no cuidado dos filhos, com larga vantagem: cuidar quando o filho fica doente (90% elas, 15% eles); acompanhar refeições (83% a 18%); levar ao médico ou dentista (89% a 22%); e ir a reuniões na escola (78% a 21%). Em nenhuma situação apresentada pelo Datafolha aos entrevistados a participação masculina no cuidado com os filhos supera 22%. Para a demógrafa Maria Coleta de Oliveira, da Unicamp, as mudanças mais recentes no mercado de trabalho têm reforçado a tendência da dupla jornada, na medida em que, nas faixas menos escolarizadas, há uma série de profissões para elas (doméstica, manicure etc.) que não existem para os homens –onde o mercado de trabalho exige cada vez mais anos de estudo. “Isso tem levado a uma acentuação da segunda jornada, até porque as mulheres acabam sendo obrigadas a trabalhar para repor a falta de capacidade dos homens de gerar renda sozinhos”, afirma.
Usando a base de dados do IBGE, a pesquisadora Cristina Bruschini, da Fundação Carlos Chagas, publicou estudo em 2006 mostrando que 89,9% das mulheres cuidavam de afazeres domésticos, enquanto o percentual de homens era de 44,7%. “E os homens gastam muito menos tempo nessas atividades”, diz Cristina. Segundo seu trabalho, a média de horas semanais dedicadas aos afazeres domésticos era de 27,2 entre as mulheres e de 10,6 entre os homens. Talvez por insistência ao longo do casamento, ou pela troca por parceiros mais velhos e experientes ao longo da vida, a pesquisa Datafolha mostra que, quanto mais avançada a idade do homem, maior é a participação dele nas tarefas cotidianas com os filhos. Mas, mesmo entre os que têm mais de 41 anos, é ainda fortemente preponderante a presença da mulher na dupla jornada. Uma compensação para elas: talvez por estarem mais presentes no dia-a-dia, as mulheres têm uma percepção mais otimista da relação com os filhos. Para 93% delas, o relacionamento é considerado ótimo ou bom. E 65% avaliam ter dedicado o tempo necessário aos filhos.
Já no caso deles, há um certo peso na consciência: 49% acham que dedicaram o tempo necessário. Mas isso não impede que, mesmo assim, 88% dos homens avaliem ter uma relação ótima ou boa com os filhos. Na casa da arquiteta Ilda Rosaria Rao Paiva, 35, por exemplo, ela participa mais da vida de Iasmin e Pedro, 2, do que o marido, Paulo Sérgio Paiva, 39. “Não existem papéis fixos, preestabelecidos. Mas, como tenho mais tempo com as crianças, elas acabam tendo mais afinidade comigo, e assim vou mais aos médicos, participo mais da vida escolar e da vida social delas. E também sou mais solicitada por elas.” Casada há sete anos, Ilda parou de trabalhar há seis, quando nasceu Iasmin. “Decidi que seria mais importante para mim estar em casa acompanhando o seu crescimento do que de volta ao mercado de trabalho. Tive a sorte de poder fazer essa opção, com o apoio do meu marido, sem, com isso, comprometer o nosso padrão de vida”, diz. Ilda afirma, porém, sentir “falta de produzir profissionalmente”, mas ela não admite a possibilidade de o marido substituí-la nos serviços domésticos e no cuidado dos filhos.

Quanto mais maduro, mais o homem participa nas tarefas cotidianas com os filhos, mas a presença da mulher é preponderante mesmo entre os que têm acima de 41

LABUTA DOMÉSTICA

9% têm faxineira
4%, empregado doméstico
1% dorme no emprego

No início de agosto, o Datafolha revelou que apenas 8% da população brasileira costuma andar de avião. Agora, a nova pesquisa sobre hábitos familiares mostra que quase o mesmo percentual tem algum tipo de ajuda extra no cuidado da casa: só 9% dos brasileiros contam com um(a) faxineiro(a) que os ajudem nos afazeres domésticos, mesmo que de vez em quando. O que a pesquisa confirma é o que muitas pessoas de classe média alta ou mais ricas às vezes esquecem: que o Brasil é um país pobre. O percentual dos que contam com empregados cai a menos da metade (4%) entre os que têm essa ajuda extra diariamente e chega a ser residual (1% da população) entre os que têm um empregado doméstico que durma diariamente “no serviço”. Por razões óbvias, quanto maior a renda dos entrevistados, maiores os percentuais dos que têm ajuda extra no cuidado da casa. Entre os que têm renda mensal superior a 20 salários mínimos, o percentual é de 14%. Mas é zero entre os com renda menor do que dez salários mínimos. Como a pesquisa leva em conta o perfil socio-econômico do total da população, e o Brasil é um país preponderantemente pobre, o peso dos que ganham menos faz com que a média geral seja de apenas 1% no quesito empregado diário que dorme em casa. O mesmo ocorre com os que contam com a ajuda de uma faxina, mesmo que só de vez em quando: são 38% dos entrevistados com renda superior a 20 mínimos e apenas 7% entre os que ganham só até dez salários.

Depoimeno: O único homem no fraldário

Para que o leitor tenha vontade de continuar lendo este texto em meio a todos os outros desta revista, começo com uma frase de efeito: assim como a mulher tem inveja do pênis (como dizia Freud), o homem tem inveja do útero e dos peitos femininos. Ao menos os homens-pai, que são minoria e diferem dos demais por ter a vontade de representar na vida dos filhos um papel equiparável ao da mãe. A inveja ocorre porque o pai sai com uma enorme desvantagem: por nove meses, o contato direto da criança é só com a mãe. Fica lá dentro na barriga, dividindo líquidos e ouvindo o bater do coração dela. Depois, são os meses de amamentação, quando o pai é fisicamente acessório –a criança precisa de pouca coisa além do leite que vem da mãe. Como, então, equilibrar o jogo? Sendo atuante.
Mas não é fácil. É preciso ter muita força de vontade para não apenas ser pai, mas participar, como recomendava aquele velho comercial de televisão. O Datafolha mostra que é a mãe, em sua maioria, que leva o filho à escola, ao médico, que cuida quando está doente... E é fácil constatar isso. Pai de duas filhas, muitas vezes sou o único homem a lidar com pomadas e lenços umedecidos nos fraldários de shoppings. Um amigo, também homem-pai, diz que se sente paquerado nessas situações. Eu nunca fui.
Pode ser um problema estético. Mas, na verdade, parece que as mulheres me olham torto. O que esse cara está fazendo aqui? Cadê a mãe, aquela maldita sortuda? Ele pensa que pode entrar aqui assim, parecem se (me) perguntar. Na sala de espera do pediatra é a mesma coisa. São pouquíssimos os homens, quando existem. E mesmo o médico parece me ignorar e preferir fazer perguntas à babá.
Nas escolas, os educadores logo avisam: o período de adaptação –aqueles primeiros dias em que a criança precisa se acostumar ao novo ambiente– deve ser acompanhado pela mãe. Dão como alternativas a babá ou uma das avós. Pai não serve. Há, claro, atividades mais nobres, mais másculas e mais prazerosas que trocar fraldas. Mas ou ganhamos terreno mesmo nessas tarefas ou vamos continuar a ver mais destaques para o Dia das Mães que para o Dia dos Pais. E, mais grave, vamos continuar a ser companheiros apenas quando se trata de esportes.
A pesquisa revela que filhos têm o hábito de conversar mais com a mãe sobre todos os assuntos, exceto futebol. Perdemos em política, sexo, religião, vizinhos, música, novela, noticiários de jornais, dinheiro, doença, trabalho, filmes, conteúdo de internet, violência, celebridades e educação sexual. É também com elas que os filhos vão ao cinema e ao teatro, à igreja, a shows de música, às compras. Na hora da comida, almoçam ou jantam mais com as mães que com os pais.
Ao avaliar a relação com pais e mães, ficamos mais uma vez com os piores números. 76% dizem ter uma ótima ou boa relação com os pais. Salta para 91% aqueles que consideram o mesmo em relação às mães. Quem mandou nascermos com barrigas incapazes de gerar crianças e sem dutos condutores de leites. Se bem que pensando melhor, há muitas vantagens agregadas a essas “incapacidades”. Mas isso é outra história.


Vaguinaldo Marinheiro, secretário de Redação de Produção, é casado e tem duas filhas.

o dono-de-casa

Exceção que confirma a regra - por Cristina Fibe

No telefone da casa de Renato Loureiro de Mendonça Couto, quem atende a reportagem é o seu filho, Mateus, de dois anos. “É mamãe? É vovó? Mamãe! Vovó!”, troca as bolas. Uma voz ao fundo pede para ver quem é e tira o aparelho das mãos da criança. “Oi, desculpa, deixa só eu pegar minha xicrinha, acabei de passar um café!”, diz Renato, antes de contar à Folha sua rotina de dono-de-casa. Ao contrário da maioria das famílias brasileiras, a sua é sustentada financeiramente pela mulher, Sofia Ribeiro da Silva, enquanto Renato fica em casa e cuida do filho, o que inclui levar à escola, ao médico, fazer comida... “Foi uma decisão que tomamos antes de ele nascer, para não deixá-lo com babá. Eu não tive babá, fui criado pela minha avó”, explica.

Publicitário que trabalhava como designer e fotógrafo freelancer, Renato tinha renda mais incerta que sua mulher, bancária, que “tem mais perfil de executiva mesmo”. Quando Mateus nasceu, ele largou tudo por um ano para se dedicar exclusivamente ao filho, enquanto a mulher cumpriu apenas a licença-maternidade. “Se ela não ganhasse o que ganha, não daria para eu parar”, afirma, sem aparentar insegurança por não ser o “provedor”. Em fevereiro deste ano, quando colocou Mateus na escola, Roberto retomou sua agenda de trabalhos ocasionais apenas em meio-período e organizada em torno do filho. “Ele é meu despertador, a manhã é exclusivamente dele. Acordo, dou banho, preparo a comida, faço a lancheira, levo e busco na escola, brinco na praça. Também faço o jantar. Às vezes não cozinho à noite porque não agüento mais o fogão”, conta Renato, que tem uma diarista para ajudar na faxina.

Artigo raro no país, ele garante que nunca sofreu preconceito e que seus amigos, entre os quais nenhum dono-de-casa, “acham o máximo” sua opção –assim como Sofia. “Ela acha ótimo o Mateus não ficar com uma pessoa estranha, mas fica triste porque algumas vezes ele procura o pai, não a mãe”, conta. “Eu não tenho a sensação de que isso aconteça porque ele fica mais comigo, mas ela tem, associa à ausência provocada pela carga horária pesada de trabalho.” Sobre a predominância feminina nos cuidados com os filhos, Renato usa sua condição de exceção para confirmar a regra. “É mais fácil cortar o pai nos cuidados com os filhos”, acha. “Queira ou não, às vezes é mais importante a mãe estar presente, há uma ligação de barriga. Além disso, a mulher faz várias coisas ao mesmo tempo, é multitarefa. Eu me desdobro, é sofrido. Queimo o arroz tirando ele do banho... Faz falta isso!”

análise

Bater ou não bater: será esta a questão? - por Anna Veronica Mautner

Uma coisa venho percebendo nesses longos anos de escuta profissional e pessoal: ninguém se orgulha de bater nos filhos. O uso da força por impulso denota descontrole. É da nossa cultura achar feio bater; quando isso acontece, freqüente ou raramente que seja, é sempre melhor esquecer, até na hora de responder a um questionário. Aplicar castigo ou ralhar são gestos menos “feios” porque não denotam destempero. Diz-se que quem grita perde a razão, imagine então se quem bate pode ter alguma. Mas podemos tomar a questão por um outro lado.

A pergunta se já bateu ou bate pode ser traduzida por outra: você maltrata seu filho? Pois bater é uma modalidade de infligir dor. Falar em bater é falar de violência, mas também falamos de vergonha e humilhação. A dor da violência física pode passar rapidamente; a humilhação e a vergonha às vezes não passam nunca. Isso é fundamental para entender por que nas metrópoles _onde as pessoas têm espaço para se refugiar no anonimato e a vergonha pode se diluir na multidão_ a pesquisa sobre bater nos filhos encontra um maior número de respostas assertivas. É mais fácil lidar com a humilhação se posso evitar o contato com quem me humilhou e com aqueles que testemunharam. Numa cidade grande, isso é possível; na pequena, mais difícil. O sofrimento é maior quando o humilhado vive reencontrando as testemunhas de sua desdita. Da mesma forma, aquele que infligiu o vergonha se sente mais culpado, tem mais vergonha do que fez e prefere omitir.

Esse tema é parte importante da história de vida de todo mundo. Não há quem, ao contar sobre sua infância, não acabe dizendo em algum momento: “Meu pai nunca relou em mim”; “Minha mãe às vezes tentava dar umas chineladas, mas era mais com meu irmão...”. Ou então: “Minhas piores lembranças são das surras que levei”. Curiosamente, os castigos só são lembrados quando são cruéis ou implicam vexame do tipo: “Você vai devolver e ainda pedir desculpas”, quando alguém pegou o brinquedo do vizinho. No processo educacional, a vergonha e a humilhação públicas são o maior castigo.

O uso de força ou violência na educação já está sendo execrado ideológica e eticamente há quase um século. Não bater tornou-se consenso. O que ainda não é consensual são os malefícios provocados pelas condições de exclusão embutidas em episódios de raiva, palavras duras e, especialmente, na ironia ou gozação. O efeito da ironia, da qual os muito jovens não conseguem se defender, é devastador. Para ser irônico, que é um jeito de disfarçar a raiva, é preciso muito mais experiência de vida do que um jovem ou uma criança podem ter. Diante da ironia, a criança e o jovem são totalmente indefesos. Comemorar a queda da surra é bom, mas é pouco. Convém pensar nas novas configurações que vêm cada vez mais ocupando lugar do “bater”.
Anna Veronica Mautner, psicanalista e colunista da Folha, é viúva, tem três filhos e cinco lindos netos


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