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Os meninos de Congonhas

Crianças e adolescentes engraxam sapatos a R$ 7 o par no terceiro aeroporto mais movimentado do país; muitos deles pararam de estudar

ROBERTO DE OLIVEIRA DE SÃO PAULO

Parece brincadeira de criança: "Botiquim!", grita um dos garotos ao avistar um "doutor", como eles costumam chamar os engravatados de Congonhas.

A palavra ganha variadas formas e pronúncias, dependendo de quem a emite. São crianças e adolescentes, que engraxam sapatos a R$ 7 no terceiro aeroporto mais movimentado do país.

Sobre a origem do termo, eles aprenderam com um "tio" estrangeiro a expressão "clean boot" --"botas limpas". Ao entenderem o significado, inverteram a ordem dos termos, acomodando a pronúncia à de uma palavra conhecida por eles.

O primeiro a anunciar "Botiquim!" aborda o cliente. "Vai engraxar, doutor?" pergunta Ricardo*, 12. O executivo balança a cabeça em sinal negativo. O menino emenda: "Está precisando, hein?".

De segunda a sexta, ao menos dez garotos de 10 a 17 anos trabalham, das 7h às 21h, em diferentes turnos.

Aparentando menos idade do que afirma ter, William, 10, conta que todo mundo se surpreende com ele trabalhando. "Eles acham que sou muito criança para estar aqui", diz. O garoto foi para Congonhas levado pelo irmão Leo, 13, que também engraxa ali. Os dois levam 30 minutos caminhando da favela onde moram até o aeroporto.

O mais jovem, que afirma estudar à tarde, conta que vive com a mãe e dez irmãos. "Aqui no aeroporto me sinto mais seguro. Lá na favela tem tiroteio. Os caras usam farinha e pedra", diz, definindo a primeira como "um pozinho branco, que parece talco, para cheirar" e pedra como uma "pedrinha que eles fumam que nem cigarro".

Marcos*, 13, há três anos abandonou a escola para engraxar. "Uma parte do dinheiro dou para a minha mãe e a outra gasto com mistura."

"Frango, carne, linguiça. Eu mesmo compro no supermercado Extra da avenida Washington Luís", diz ele.

"Extra é com X', né?", pergunta ao ver o repórter tomar nota. Consegue ler, mas apresenta dificuldade na hora de escrever. Não sabe, por exemplo, como é feita a letra H.

O irmão dele, Paulo*, 16, também abandonou a escola para "limpar sapato". O primeiro vive com a mãe e mais cinco irmãos. O segundo, com o pai, a madrasta e "outros irmãos que nem sei quantos são". Contam que o mais velho está preso por tráfico.

PIPA E SMARTPHONE

Paulo é de pouca prosa. Prefere música. Improvisa raps na caixa de engraxar.

As letras falam da repressão dos seguranças do aeroporto contra os garotos, do sonho de morar numa mansão no Morumbi e do comportamento das meninas da favela onde moram, a Morro do Piolho (zona sul da capital).

"As minas de lá não gostam de quem trabalha", conta Paulo. "Elas querem ficar com os traficantes", emenda.

Os jovens não gostam de circular pela favela com a caixa de engraxate à mostra. "Ela fica guardada num esconderijo no caminho", conta Antônio*, 16. "Tenho vergonha", diz, cabisbaixo. "Não quero ser engraxate pelo resto da vida. Ficar limpando o pé dos outros? Isso é humilhante para todo mundo."

Quer ser engenheiro. Diz cursar o segundo ano do ensino médio, apesar de faltar muito. O dinheiro que ganha usa para comprar roupas, produtos de higiene e para colocar crédito no celular.

Mostra a sua mais recente aquisição: um smartphone. Pelas contas de Antônio, pode ganhar R$ 50 num dia, "quando tem bastante movimento". Explica que em casa os pais compram a comida.

Um colega do bairro o convidou para ir engraxar em Congonhas. "Fui ficando, mas não sou feliz aqui."

Tinha dez anos quando começou a engraxar no aeroporto. Ganhava o suficiente para comprar doces e pipas.

Ao se lembrar daquele período, estampa no rosto um sorriso, que deixa à mostra o aparelho nos dentes. "Eu mesmo pago", orgulha-se.

Se o movimento no aeroporto começa a cair, os meninos aproveitam a "folga" para o bate-moeda. A brincadeira consiste em jogar, com força, uma moeda sobre outra para tentar virar a que está no chão. Vence o primeiro que conseguir virar a moeda.

Às vezes, o espírito de menino supera o de trabalhador. Os rapazes, então, improvisam um campinho na área de acesso ao estacionamento. As caixinhas viram traves.

Naquelas horas, os garotos de Congonhas provam, por algum intervalo de tempo, do sabor da infância. Até o momento em que um deles avista um "doutor" e grita "Botiquim!". Fim de jogo.

  • nomes fictícios

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