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Pasquale Cipro Neto

'Pilar da ponte de tédio'

O que significa a falta de artigo em "ponte de tédio"? Fosse "do tédio" a coisa seria um tanto diferente, não?

Entro numa das estações do metrô de São Paulo e dou de cara com estes versos do poeta português Mário de Sá Carneiro (Lisboa, 1890, Paris, 1916): "Eu não sou eu nem sou o outro / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro".

É claro que fiquei parado diante do texto, não porque ainda não o conhecesse, mas porque fui tomado por todo o quadro: o que (me) dizem esses belos versos, que bem sintetizam a obra desse inquieto e inquietante poeta português, o ambiente em que os vi, a (falta de) reação das pessoas, que, entediadíssimas, simplesmente ignoravam o belo painel.

É, caro Oswald ("A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico"), parece que falta muito. A ideia de poesia no metrô é ótima, mas o inexorável cotidiano que tanto anestesia as pessoas... ("A noite geral prossegue", diz Drummond no antológico poema "A Morte do Leiteiro").

Seria muito interessante discutir a temática desse e de outros poemas que tratam do assunto (a não menos inquietante poetisa portuguesa Florbela Espanca, por exemplo, escreveu obras-primas sobre a questão -aliás, os dois devem andar de braços dados no firmamento), mas vou ficar no meu reles ofício de chamar a atenção para alguns detalhes linguísticos que parecem decisivos para a compreensão dos versos de Carneiro.

Um deles é a passagem "ponte de tédio". O caro leitor notou que Carneiro escreveu "ponte de tédio" e não "ponte do tédio"? Já vamos ver isso, mas, antes, lembro que em algumas das recentes colunas mostrei alguns casos de péssimo uso (e de péssimo não uso) dos artigos nos títulos jornalísticos. Na semana passada, por exemplo, vimos que a forma "do" (preposição "de" + artigo definido "o") foi empregada na passagem "quando o motorista do Toyota Hilux" sem que esse automóvel tivesse sido citado antes no texto. No lugar de "do" deveria ter sido empregada a forma "dum" (preposição "de" + artigo indefinido "um") ou a forma "de um", sem a contração.

Quem lê com atenção os títulos jornalísticos certamente já percebeu que o artigo (sobretudo o definido) vai e vem, como as ondas. É claro que não me refiro aos substantivos que abrem os títulos, que, como se sabe, nunca são precedidos de artigo nas manchetes de jornais e revistas.

Mas voltemos aos versos de Sá Carneiro. O que significa a falta de artigo em "pilar da ponte de tédio"? Que essa ponte é feita de tédio, ou seja, que a matéria de que ela é feita é o tédio (a ponte "que vai de mim para o Outro" é feita de tédio). Fosse "ponte do tédio" a coisa seria um tanto diferente, não? Será que preciso explicar? Bem, por via das dúvidas, lá vai: se a ponte fosse "do tédio", ela, a ponte, "pertenceria" ao tédio.

Não podem passar despercebidos os dois pontos (:) que vêm depois de "intermédio" (volte aos versos de Carneiro, se necessário). Que fazem aí? Funcionam como marca da introdução da "tradução" do segundo verso, que termina em "intermédio" ("Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar de tédio que...").

Um pilar não deixa de ser um intermédio, mas esse pilar/intermédio (que é feito de tédio) dos versos de Sá Carneiro... Bem, o caro leitor já percebeu. Não resisto à tentação de dizer que esse pilar parece o oposto do que tradicionalmente é um pilar, ou seja, não funciona como alicerce, algo em que algo ou alguém se apoia. Esse pilar (em que se apoia a ponte que une o eu ao outro) parece aí uma metáfora do sentimento de prisão e de condenação ao tédio, ao vazio ("Eu não sou eu nem sou o outro"). Se pensarmos nesses versos expostos numa estação de metrô, então... É isso.

inculta@uol.com.br

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