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Pasquale Cipro Neto

O Brasil, a rotatória e os analfabetismos

A barbárie é filha direta da ignorância e se manifesta pelo atrevimento (quase) inerente à ignorância

O caro leitor certamente já ouviu e/ou leu matérias a respeito do nosso analfabetismo funcional. Estudos recentes informam que apenas 24% dos brasileiros letrados entendem textos de alguma complexidade, ou seja, apenas um em cada quatro brasileiros letrados entende um texto que talvez possamos chamar de "simples".

Nossa dificuldade com o texto é inegável e não escolhe classe social. Não pense o leitor que ela é "privilégio" de pobres ou de gente pouco escolarizada. A leitura de trabalhos de conclusão de curso de muitos e muitos alunos de letras (sim, de letras!) prova que a situação é dramática.

O livro "Problemas de Redação", do professor Alcir Pécora, traz um retrato sombrio do problema. Publicada em 1999, a obra resulta da percepção do professor Pécora de que alunos da primeira turma de estudos linguísticos de uma das mais importantes universidades do país concluíram o curso sem a mínima condição de ler e/ou escrever de acordo com a escolaridade formal que detinham.

Mas o nosso analfabetismo não é apenas verbal, ou seja, não se limita ao que é expresso por meio da língua; ele é também não verbal, isto é, abrange também a dificuldade para lidar com signos que não se valem da palavra escrita ou dita, mas, por exemplo, de imagens, de cores etc.

Boa parte da barbárie brasileira pode ser demonstrada pelo que se vê no trânsito das nossas cidades. Ora por falta de vergonha, ora por analfabetismo verbal e/ou não verbal + falta de vergonha, os brasileiros provamos, um bilhão de vezes por minuto, que este país não deu certo.

Uma das situações que acabo de citar pode ser ilustrada pelos semáfaros. Decerto os brasileiros conhecemos o que significam os signos não verbais (as três cores) que há nos "faróis" ou "sinaleiras". O desrespeito ao significado desses signos não decorre do analfabetismo (verbal ou não verbal), mas da falta de vergonha.

Agora a segunda situação. Nada melhor do que as rotatórias para ilustrá-la. Em todos os muitos cantos do mundo pelos quais já passei, a rotatória é tiro e queda: funciona. Os motoristas conhecem o significado desse signo não verbal e respeitam-no. No Brasil, nem agentes de trânsito conhecem a regra (mais de uma vez já constatei isso). O que mais se vê é gente entrando a mil na rotatória, literalmente soltando baba, bestas-feras que são.

Quando me aproximo de uma rotatória e já há um carro dentro dela, faço o que se deve fazer: paro e dou a preferência. Às vezes, sabe Deus por que razão, o motorista que tinha a preferência também para (em muitos cruzamentos há uma espécie de "convenção" tácita sobre a preferencial, embora haja ali signos que contradizem essa "convenção"). Abro o vidro, ponho uma das mãos para fora e faço movimentos circulares com os dedos para tentar mostrar ao outro motorista que aquilo é uma rotatória e que ele, por ter entrado antes, é que tem a preferência. Começa a buzinação. A ignorância é atrevida, arrogante, boçal. Mas eu aguento: enquanto o outro não passa, continuo com os movimentos manuais circulares e não saio do lugar. Quase sempre alguém fura a fila e passa exibindo outro signo não verbal (dedo indicador em riste), mais um a traduzir o nosso elevado grau de barbárie.

Não sou dos que dizem que este país é maravilhoso etc., que a nossa sociedade é maravilhosa etc. Não há solução para a barbárie brasileira que não comece pela admissão e pela exposição da nossa vergonhosa barbárie de cada dia, sob todas as suas formas de manifestação. A barbárie é filha direta da ignorância e se manifesta pelo atrevimento inerente à ignorância. Falta competência de leitura, verbal e não verbal; falta educação, formal e não formal. Falta vergonha. Falta delicadeza. Falta começar tudo de novo. É isso.


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