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Pasquale Cipro Neto

'Foi bonita a festa, pá...'

Na letra de Chico, o mar que separava o Brasil de Portugal era simbólico: lá, as águas da liberdade; cá, as da opressão

Pela enésima vez neste espaço, vou citar o educador Paulo Freire: "A leitura do mundo precede a leitura da palavra". De nada adianta saber o que resulta da junção de letras e de palavras, se não se conhece o que está por trás e por dentro do que foi escrito ou dito.

Pois bem. Recentemente, o Brasil civilizado fez várias e importantes reflexões sobre o cinquentenário (do) golpe de 1964, que mergulhou o país nas trevas, como faz qualquer ditadura, tenha ela o matiz que tiver.

E do lado de lá do Atlântico? Ora pois, a parcela civilizada de Portugal comemora os 40 anos do fim da longa e sombria ditadura salazarista, sepultada em 25 de abril de 1974 pela "Revolução dos Cravos", que Chico Buarque retratou na antológica canção "Tanto Mar".

No disco que Chico gravou com Maria Bethânia em 1975 ("Chico Buarque & Maria Bethânia, Ao Vivo"), a letra da canção não pôde ser incluída. Entrou uma versão orquestrada da melodia, sem letra. O texto original foi ouvido apenas na gravação editada em Portugal, àquela altura já liberto da PIDE e da censura.

Em 1978, com a censura no Brasil já moribunda, Chico atualizou a letra e gravou a canção num antológico LP, que incluía "Cálice", "Feijoada Completa" e "Apesar de Você".

A "nova" letra de "Tanto Mar" assim começava: "Foi bonita a festa, pá / Fiquei contente / Inda guardo renitente / Um velho cravo para mim". Que "cravo" é esse? Ora, é o cravo da "Revolução dos Cravos", que assim se chamou porque, segundo se diz, uma florista de Lisboa distribuiu cravos vermelhos aos que estavam pelas ruas, os quais os deram aos soldados, que os colocaram nos canos de suas armas.

A estrofe da canção que mais relaciona a situação vivida por Portugal naquele abril de 1974 com a situação do Brasil no mesmo período é esta: "Sei que há léguas a nos separar / Tanto mar, tanto mar / Sei também quanto é preciso, pá / Navegar, navegar". Antes que alguém pergunte, "pá" é um vocativo tipicamente português, algo como o nosso "rapaz", "cara" ou algo equivalente. A origem provável desse "pá" é a redução de "rapaz".

É forte o valor metafórico das expressões "léguas a nos separar" e "tanto mar". Literalmente, o Brasil e Portugal são, sim, separados por muitas léguas de mar, mas o mar de que fala o grande Mestre é outro. Na letra de Chico Buarque, o mar que separava o Brasil de Portugal era simbólico: lá, as águas da liberdade, do fim da tirania; cá, as águas da opressão, da barbárie.

Como belíssimo corolário da intertextualidade entre as duas realidades, Chico emprega os versos "Sei também quanto é preciso, pá / Navegar, navegar", numa clara alusão (mais uma vez metafórica) aos conhecidos versos portugueses que dizem que "Navegar é preciso / Viver não é preciso". Havia (e ainda há) muito a navegar para que o Brasil chegasse (e chegue) à plena democracia, à verdadeira democracia.

Sobre o tema "ditadura em Portugal", recomendo o memorável filme italiano (sim, italiano) "Afirma Pereira", estrelado por Marcello Mastroianni e baseado num livro do escritor italiano Antonio Tabucchi, que tinha forte relação com Portugal. É isso.


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