Meu mundo na barraca
Quase em frente ao shopping Higienópolis, no bairro de classe alta, G.,15, montou seu universo particular; há pouco tempo morava numa árvore
Passa da meia-noite e um garoto brinca com seu carrinho no meio fio encharcado pela chuva. Corre, para, torna a correr. Volta e abre o zíper da barraca instalada quase imediatamente em frente ao shopping Higienópolis.
Ali, guarda bem mais do que as roupas doadas. Lá dentro, bem no coração do bairro de classe alta, G. vai construindo seu mundo desde o último fim de semana.
"Tenho toda a coleção do Toy Story aqui", ri de orelha a orelha. Apesar de seus 15 anos, ele ainda é criança. "Você já viu esse aqui?", pergunta. Em suas mãos, um punhado de brinquedos.
Não lhe falta nada. Pelo menos, nada de que ele sinta falta. "Ihhh, hoje almocei três vezes. Agora só tenho biscoito, mas tô tranquilo", diz. Se o sotaque não o entregasse, o biscoito (bolacha em bom "paulistanês") o entregaria.
O menino é de Cachoeiras de Macacu, no Rio. Esta é a terceira vez que foge e vem parar em São Paulo.
Velho conhecido na rua Veiga Filho, ele teve a história contada, em agosto, por "O Estado de S. Paulo" quando morava em cima de uma árvore em frente ao edifício Santa Emília, colado ao shopping.
Alertada por uma moradora, sua mãe o levou de volta. Nem dois meses e G. retornou. "Peguei carona num caminhão de tomates", diverte-se.
Mais uma vez na Veiga Filho, construiu outra casa na árvore com restos de madeira --para desespero de parte dos moradores que desaprova sua permanência por ali.
"Queriam pôr uma placa para não darem esmolas para ele, mas eu sempre vou ajudar", diz Dulce Santucci, 80.
Enquanto a chuva não deu as caras, o menino foi ficando. Quando ela resolveu chegar, instalou-se o problema. "Choveu e ele ficou aí todo encharcado. Agora, alguém do prédio arrumou a barraca", diz o segurança do shopping.
Na verdade, a "casa" de G. veio de um desconhecido. "Uma BMW parou aí e um rapaz muito bem alinhado deixou a barraca", conta Dulce.
A decoração do centro de compras deixa claro que por ali já é Natal e G. não sabe bem o que quer. Se pudesse, queria mesmo era comprar seus próprios brinquedos. "Vou lá na Ri Happy, tio!"
Hiperativo, ele tomava medicamento controlado. Na rua, deixou pra lá. Talvez precise mesmo é de espaço e um tratamento alternativo, diz a terapeuta Luciana Sodré Cardoso, moradora do prédio.
É ela quem todos os dias mantém a mãe do menino, um diarista de 38 anos, informada. Pelo Facebook, fica sabendo se ele está comendo e onde está dormindo. "Ele não obedece, já fiz de tudo. Meu medo é que alguém possa explorá-lo na rua", diz a mãe.
Segundo ela,o garoto nunca recebeu um diagnóstico. "Ele tem 15 anos, mas é como se tivesse 10", afirma.
Dentro da barraca, caprichosamente ele dispôs um colchonete e uma poltrona sem pés. Pendurado, o radinho de pilha não para. "Conhece essa? Não?", balança a cabeça em desaprovação.
G. é assim. Passa de um assunto a outro sem que você se dê conta. Finalmente começa a falar da família. O pai morreu, lhe restou a mãe, os irmãos são adultos e... "eu sei cantar Justin Bieber. Quer ver? Prefere Michael Jackson?
Sorriso fácil, ele inventa um idioma próprio. No refrão: "ohh baby, baby, baby ohh."
Flamenguista, adotou o Corinthians quando chegou a São Paulo. "Quer saber? Sou Timão! Sou Timão!", bate no peito. Quase ao mesmo tempo, um morador do Santa Emília bate a janela do segundo andar. É a senha para perceber que está incomodando.
A discrição, porém, não é seu forte e ele volta a se empolgar. "Já fui nessa sinagoga aí da rua, mas não entendi nada. Eles rezam noutra língua."
Para mostrar que não está brincando, saca um quipá. "Olha só, já viu isso? Eles usam na cabeça", ri.
Passa da 1h30 e o garoto não dá nenhum sinal de ter sono. Com a mesma velocidade com que conta suas histórias, no entanto, de repente dispara: "bom, vou dormir. Se quiser passa aqui amanhã, acordo às 15h."
O menino coloca a cabeça para fora da barraca, espia o outro lado da rua, fecha o zíper da sua "casa" e se recolhe.
Meio minuto depois, uma moradora salta do carro, caminha até o portão, olha para o "mundo de G." e diz: "boa noite, durma bem"
"Durma bem", ouve-se lá de dentro da barraca.