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Grávidas do crack

Operação expõe o drama de dezenas de mulheres que consomem a droga com seus filhos na barriga; medicina ainda não mapeou as sequelas nas crianças

Fotos Fabio Braga/Folhapress
Lilian pode dar à luz a qualquer momento
Lilian pode dar à luz a qualquer momento

CLÁUDIA COLLUCCI
ROGÉRIO PAGNAN
DE SÃO PAULO

Faz um mês que Lucas deixou de usar sedativos. Ao nascer, o franzino bebê, agora com quatro meses, era agitado, chorava muito, sofria tremores e taquicardia, sintomas da abstinência.

Lucas é filho de uma usuária de crack e "consumiu" a droga durante os sete meses de vida uterina. Nasceu prematuro, com apenas 1,8 kg.

Também apresenta atraso no desenvolvimento e deficiência motora, o que dificulta a amamentação. Os médicos não sabem se as sequelas de Lucas serão permanentes.

O impacto do crack na gestação tem sido objeto de vários estudos nas últimas três décadas, mas ainda há controvérsia sobre os efeitos a longo prazo na criança.

A questão é: como separar as sequelas da droga de outros fatores também presentes na vida da gestante dependente, como alcoolismo, tabagismo e desnutrição?

"Não há dúvida de que pode haver efeitos devastadores. Mas não podemos definir o quanto é do crack, isoladamente, e o quanto está relacionado a maus hábitos que a gestante desenvolveu por conta da dependência", diz a médica Silvia Regina Piza Jorge, chefe da clínica de pré-natal da Santa Casa de São Paulo.

A operação policial iniciada em 3 de janeiro jogou luz sobre as dezenas de grávidas dependentes que perambulam pelo centro paulistano atrás da droga -são pelo 20, segundo a PM e a prefeitura, só na área da cracolândia.

Os bebês dessas mulheres tendem a nascer prematuros e com atraso de desenvolvimento. Também têm mais chances de apresentar sequelas neurológicas, retardo mental, deficit de aprendizagem e hiperatividade.

A preocupação dos especialistas é que os bebês não fiquem estigmatizados. "Não se deve criar uma expectativa negativa sobre o futuro desses bebês. Um ambiente afetuoso, estimulante e acolhedor é essencial para desenvolver o potencial de qualquer criança", diz o psiquiatra infantil Ronaldo Rosa.

ABORTO

Grávidas usuárias de crack sofrem mais riscos de aborto, hemorragias e de descolamento de placenta. A situação é agravada porque a maioria delas não faz o pré-natal.

"São pacientes em uma grave situação de vulnerabilidade social, com rompimento de laços com a família e com a comunidade", diz Corintio Mariani Neto, diretor da maternidade estadual Leonor Mendes de Barros.

"É uma aberração. A gente não vê essa situação em outros países do mundo", afirma o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, referindo-se às grávidas da cracolândia.

Estudo da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) com dez grávidas que vivem na cracolândia, obtido com exclusividade pela Folha, mostra que apenas duas estão fazendo o pré-natal.

Todas elas engravidaram na região central de São Paulo. No mês passado, quando foram feitas as entrevistas da Unifesp, sete estavam entre o quarto e o sexto mês de gestação. Apenas uma concluiu o ensino fundamental.

Cinco das gestantes sabem quem é o pai do filho: parceiros do crack. Oito já tinham filhos e três haviam sofrido abortos anteriores. Seis grávidas fumavam até dez pedras por dia. As demais chegavam a consumir 20 pedras.

Metade das gestantes financia o consumo de crack pedindo esmola e ou trocando sexo pela droga.

Segundo o psiquiatra Marcelo Ribeiro, coordenador do estudo, metade das grávidas aceitaria tratamento para dependência química, mas grande parte (sete) acha que consegue parar sem a necessidade de internação.

Se a cracolândia acabasse, para onde você iria?, perguntaram os pesquisadores. Todas responderam: para outra cracolândia ou para qualquer outro lugar que tenha crack.

DIFICULDADE

Shirley Inojoza, missionária da igreja Batista no projeto Cristolândia, que trabalha com viciados em crack na região da cracolândia, diz que é difícil conseguir vagas em clínicas de recuperação para mulheres grávidas. "As clínicas não aceitam porque não têm o que fazer com o bebê."

Por ainda estarem nas ruas, essas mulheres perdem a guarda dos bebês logo na maternidade, segundo ela. Os hospitais, para proteção da criança, não liberam a criança nessas condições.

"Quando eles perdem o bem mais precioso de suas vidas, se afundam ainda mais nas drogas. É um círculo vicioso", relata Shirley.

Um levantamento feito na maternidade estadual Leonor Mendes de Barros, a maior da zona leste de São Paulo, aponta um aumento no número de mães dependentes de crack e cocaína que perdem a tutela de seus bebês.

Em 2010, o hospital encaminhou para a Vara da Infância 43 crianças. Em 2007, foi um caso. Em 2008, 15, e, em 2009, 26. No primeiro trimestre de 2011, o hospital registrou 14 perdas da tutela.

LILIAN BASTOS E SOUZA, 26

GRÁVIDA HÁ NOVE MESES

USUÁRIA DE CRACK HÁ QUATRO ANOS

Lilian diz ter começado a usar cocaína aos 22 anos quando frequentava, em Carapicuíba, estacionamentos de postos de combustível para ouvir música com colegas. O crack veio na sequência.

Ela descobriu ser soropositiva quando teve sua primeira filha, há dois anos e oito meses. Lucas, que carrega agora na barriga, pode nascer a qualquer momento. Lilian ainda não sabe como fará para tirá-lo do hospital sem ter endereço nem emprego fixo.

A filha mora com um irmão e com a cunhada. "É muito estranho ver minha filha chamar minha cunhada de mãe. Eu, para ela, sou a tia."

O bebê que leva na barriga fica agitado, conta, quando ela usa droga ou quando está em abstinência. Os exames dizem que a criança está normal. A jovem diz conversar muito com o bebê na barriga. "Peço tanta desculpa que já nem sei se ele as aceita mais."

Lilian não quer mais ter filhos. Diz que aceita ser internada, mas desde que a clínica receba também seu atual namorado, que ela admite ter arrastado para o crack.

"Se for com ele [o namorado], eu vou agora mesmo."

JOYCE VIEGA DE SOUZA, 19

GRÁVIDA HÁ DOIS MESES

USUÁRIA DE CRACK HÁ SETE ANOS

Joyce chora ao falar da prisão do companheiro, ocorrida na cracolândia há seis dias, por tráfico de drogas.

"Forjaram o flagrante, esses vermes", ela grita ao ver passar um carro da PM. "Ele [o namorado] me protegia. Agora estou só eu e o bebê."

Aparentemente sob efeito do crack, em meio a um grupo de uns dez dependentes, a jovem admite temer pela saúde da criança que carrega, dada a vida que leva.

"A gente não dorme mais. Jogam os cavalos em cima", diz, sobre a operação da PM.

Joyce cogita entregar o bebê para adoção, a fim de que tenha "uma vida melhor".

Ela diz já ter se prostituído para comprar drogas. Está na cracolândia, conta, para que sua filha de cinco anos não a veja nas atuais condições.

"Mas eu tenho a guarda [da filha de cinco anos]. Quando quiser, eu pego ela de volta."

De repente, Joyce para de chorar ao perceber o furto de sua "casinha de fogo", como ela chama o cachimbinho para fumar pedras de crack.

"A gente é dependente químico. É uma doença. Quando entra na veia da gente, acabou, nunca mais sai."

DÉBORA MARIA CARDOSO, 28

GRÁVIDA HÁ CINCO MESES

USUÁRIA DE CRACK HÁ 16 ANOS

Débora começou a usar crack aos 12 anos, quando, afirma ela, envolveu-se emocionalmente com um traficante em Franco da Rocha.

Na primeira vez, ela lembra, passou mal e chegou a ser levada para o hospital.

"Eu costumava pegar a droga dele escondido. E gostei do docinho, do crocante."

Hoje, ela tem quatro filhos de três pais diferentes. Espera pelo quinto, que não será o último, ela promete.

Débora diz que quer ter mais um filho para homenagear o atual companheiro.

Eles "moram" nas calçadas da rua Maranhão, no bairro nobre de Higienópolis, em razão da "generosidade" das pessoas nas doações. Só conseguem comprar drogas, afirma Débora, por causa delas.

"Roubar, nunca roubei."

No Natal, ela recebeu a visita de uma filha. A menina pediu um chocolate. "A mamãe não tem dinheiro."

Débora diz ter sido internada várias vezes. Seu sonho, conta, é ter uma carroça para catar papelão e, assim, ganhar dinheiro, comprar um barraco e reunir os filhos.

"Todo mundo pode ter um sonho, por que eu não?"

SARA LIA NUNES OTA, 27

GRÁVIDA HÁ CINCO MESES

USUÁRIA DE CRACK HÁ 16 ANOS

Sara conheceu o crack ainda criança. Tinha 11 anos quando um tio lhe ofereceu a droga. Ela conta que se sentia rejeitada pela família, motivo pelo qual abraçou o vício.

Ela diz ter conseguido abandoná-lo por alguns anos e, no período, teve três filhos. Em 2009, porém, teve uma recaída.

Isso aconteceu após o marido ser preso. Para sustentar a casa, passou a trabalhar até tarde da noite. Deixava os filhos com a sogra cadeirante. "Uma noite, quando cheguei, o conselho tutelar tinha levado todos os meus filhos. Aí, me afundei nas drogas."

Nos últimos seis meses, ela morou na cracolândia.

Não sabe quanto pesa, mas trocou o número 44 de calça para 36, "que fica caindo". Sara afirma que esteve internada sete vezes. Ontem, tentava nova internação. "Não quero perder mais um filho."

Ela diz que sua principal preocupação, agora, é com a saúde do bebê. Antes, conta Sara, fazia de tudo pela droga. "Já matei, já roubei. Me prostituí."

JÉSSICA, 20

GRÁVIDA HÁ SEIS MESES

NÃO SE LEMBRA HÁ QUANTO TEMPO É USUÁRIA

Chove na rua dos Gusmões e a jovem Jéssica, 20, grávida de seis meses, não consegue abrigo. Encharcada, é tocada de uma marquise a outra.

Transportadoras, lojas de material elétrico, de artefatos de borracha, ainda abertas não querem a menina por perto, um fiapo magrinho vestido com um collant, o barrigão de fora. No fim da tarde, fechado o comércio, ela encontra sossego e estica seu papelão no chão, para descansar.

Jéssica diz que quer ficar com o bebê. Ela sabe que a regra é dura. Se não tiver um endereço fixo até o parto, perderá a criança. "Aí, eu deixo o nenê com a minha mãe", diz. O problema é que Jéssica não fala com a mãe há dois meses. As duas não se dão.

A jovem diz que já passou no posto de saúde que atende a área da cracolândia, para fazer um pré-natal.

Na testa dela, é possível ver um hematoma proeminente e muitas escoriações.

"Eu nem sei direito como isso me aconteceu."

Depois de cinco minutos de uma conversa feita com muita dificuldade, Jéssica acende de novo seu cachimbo de crack.

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