O inferno são as outras
Vítimas de Roger Abdelmassih contestam versão de livro escrito por mulher que diz ter achado o ex-médico, condenado por 37 estupros
"Por acaso nós não temos cara, somos anônimas?"
"O livro é sobre a minha vida, não tinha que citá-las."
"É autopromoção."
"É um problema de ego. Não da minha parte."
"Ela transformou a realidade numa ficção, talvez para virar um bom filme."
"Eu cacei aquele monstro."
"Claro que não."
Elas se apoiavam e dividiam as angústias de terem sido violentadas. Há pouco menos de um ano, porém, a relação começou a azedar, até que há 15 dias... Azedou de vez.
Helena Leardini, 45, dona de casa; Teresa Cordiolli, 64, gerente condominial; Ivani Serebrenic, 47, empresária; e Nelma Luz, 50, farmacêutica, continuam unidas. A amizade com a estilista Vanuzia Leite Lopes, 55, no entanto, parece difícil de ser retomada.
Essas mulheres são algumas das vítimas do ex-médico Roger Abdelmassih, 71.
Condenado a 181 anos de prisão por 37 estupros, o homem que já foi considerado o "papa da fertilização in vitro" vivia como fugitivo quando foi capturado no Paraguai em 19 de agosto de 2014.
Era o dia pelo qual elas mais esperavam, mas os problemas recomeçaram. Desde 2012, elas tinham um projeto de escreverem um livro juntas --ideia de Teresa, diz Helena. Elas guardam uma troca de mensagens com os detalhes.
O projeto não foi em frente e, no dia 14, as amigas foram surpreendidas ao lerem nos jornais que Vanuzia --a Vana-- havia escrito seu próprio livro: "Bem-Vindo ao Inferno". A frase é a mesma que ela lançou quando o ex-médico desembarcou em São Paulo escoltado por policiais.
O problema, porém, diz Helena, está no subtítulo: "A História de Vana Lopes, a Vítima que Caçou o Médico Estuprador Roger Abdelmassih". E, claro, no conteúdo.
"Então somos coadjuvantes?", pergunta Helena, que afirma que ela e as amigas ficaram sempre juntas e participaram do processo. "Ela tomou para si uma história que também é nossa", diz Nelma.
Com prefácio do juiz federal Sérgio Moro, da Operação Lava Jato, e da advogada Rosangela Wolff Moro, sua mulher, "Bem-Vindo ao Inferno" ganhou espaço nos jornais.
Em meio ao escândalo de corrupção na Petrobras, Moro foi com a mulher ao lançamento do livro, na avenida Paulista. Saiu aplaudido.
No prefácio, o casal ressalta que a autora fez "justiça com o próprio mouse". É uma referência à luta de Vanuzia nas redes sociais, por onde ela diz ter feito contato com "milhares" de pessoas que lhe deram pistas e documentos que indicaram o paradeiro do homem que a havia estuprado em 1993.
"Não escrevo nada que não possa provar", disse Vana, mostrando documentos que recebeu de testemunhas --extratos bancários e contas telefônicas da atual mulher de Roger, Larissa Abdelmasih.
Um dia após Vana receber a Folha, outras quatro vítimas de Roger que fazem parte de um grupo de conversas on-line mantido pela estilista procuraram a reportagem para confirmar o protagonismo da autora na caçada ao médico.
"Isso tudo é uma calúnia. Elas querem levar o mérito que é da Vana, e só dela", diz Gislaine Afanasiev, 44.
"A Vana é uma das piores vítimas desse monstro, mas esse livro é uma ficção", diz Ivani. Em breve, o desentendimento vai ganhar novo capítulo. "Vamos fazer uma interpelação judicial para que ela explique o que está no livro", diz Marçal Alves de Melo, advogado das amigas.