Francisco Daudt
Sadomasoquismo sutil
O s&m não nos é alheio: em sua modalidade sutil, permeia nossas vidas e nos contagia sem que notemos
O pai tijucano viu o filho desenhando e gritou: "Para de desenhar que isso é coisa de viado!" (com "i" mesmo, que "veado" não tem o mesmo impacto homofóbico). Quem viu "Anos Dourados", do Gilberto Braga, sabe que a Tijuca era um bairro do Rio de Janeiro que imprimia caráter: valores de classe média e preconceitos escancarados.
Se fosse um pai da zona sul, mais sofisticada, não diria uma palavra: suspiraria e balançaria a cabeça em desalento. Os mesmos preconceitos, mas com sutileza.
Quando se fala em sadomasoquismo, pensa-se logo em chicotes, botas de cano alto, couro tacheado, algemas e gemidos. S&m é uma sigla conhecida da pornografia especializada, há lojas tragicômicas em Nova York que valem uma visita curiosa, podemos olhá-las com um meio sorriso de quem visita o zoológico.
Mas o s&m não nos é tão alheio como pensaríamos: em sua modalidade sutil, ele permeia nossas vidas e nos contagia sem que percebamos. Ele é mal compreendido: suas raízes moram na natureza humana, em nosso desejo de superioridade e de domínio; não por acaso existe um ícone s&m: a dominatrix.
"Bem, isso explicaria o sadismo, mas, e o masoquismo?" É a outra face da mesma moeda, ilustrada pelo que um cliente gay me disse: "Quando ele goza com a minha dor, sou eu a triunfar".
Fora do âmbito sexual, um político de origem pobre pode usá-la para, através da chantagem emocional, se vingar das elites que supostamente o oprimiram. Quantos não usam o coitadismo e o martírio como meio de triunfar? Pense na política doméstica, na anedótica mãe judia a dizer: "Come, meu filho, senão eu ME mato".
Sadismo & masoquismo são jogos de poder, portanto.
E não existem separadamente: o pai esculacha o filho, e a vingança do coitadinho é que todos o- lharão esse pai como um fdp. O que dará ao pai mais raiva, mais maltrato com o filho, num círculo vi- cioso sem fim.
Mas esses exemplos ainda estão muito longe de você. Vejamos então o Facebook: fulana postou uma foto daquelas de felicidade triunfalista ultrajante, pretendendo superioridade. "Olha que vida maravilhosa eu tenho, muito melhor do que a sua", seria a tradução tijucana do post. Mas não, a mensagem é sutil: "Ah, como é bom partilhar com vocês a minha felicidade!"
Para surpresa de ninguém, a reação é vingativa, a inveja quer destruir o que lhe parece superior: diversos comentários sarcásticos depreciativos, desde os quilinhos a mais da amiga à decoração cafona do ambiente fotografado. Quanto mais engraçadinhos, mais disfarçados em sua maldade, mais bem-sucedidos. Formam-se assim legiões de viciados em destruir: a destruição é fácil, mas pode parecer grandiosa, basta lembrar as torres gêmeas de NY. Poucos sabem o nome de quem as construiu, já o de Osama Bin Laden...
Assim, dominadores e submissos, sádicos e masoquistas, mártires e algozes, vencedores e fracassados formam pares aprisionados uns aos outros. Como o pior destino dos casais, quando os dois se sentem carcereiros e encarcerados um do outro e levam a vida em vinganças sucessivas. Mesmo que sutis.
A alternativa? Construir amor companheiro dá mais trabalho, mas é mais bonito e gostoso.