Cidades da Venezuela vivem onda de casos de linchamento nas ruas
Crimes em represália a roubos e furtos ocorrem até em bairros nobres de Caracas, capital do país
Para ONGs, descrédito da polícia e da Justiça favorece o fenômeno; governo Maduro atribui violência à oposição
Acabava de anoitecer, numa sexta-feira recente, quando gritos de "pega ladrão" ecoaram pela Quarta Avenida de Los Palos Grandes, um dos bairros mais sofisticados da capital venezuelana.
Transeuntes corriam por todo lado atrás de dois jovens que haviam arrancado a bolsa de uma mulher a uma quadra dali.
Os ladrões foram encurralados em frente a uma loja de celulares, onde receberam os primeiros murros e chutes. Em segundos, estavam no chão, agitando braços e pernas para tentar se proteger da avalanche de golpes.
A cada instante crescia a massa em cima deles, em uma cena de linchamento comum no Brasil e também cada vez mais na Venezuela.
Pessoas chegavam correndo das adjacências. Moradores desciam às pressas de seus apartamentos. A maioria dos que participavam do ataque –presenciado pela Folha– eram moradores do bairro, homens brancos entre 20 e 40 anos, alguns com corpo malhado de academia.
Mulheres, idosos e até crianças acompanhavam de longe as agressões. "Mata logo", clamavam os mais exaltados. "Assim vocês aprendem, seus vagabundos", vociferava um homem.
Em meio à gritaria era possível ouvir o som oco dos chutes na cabeça dos delinquentes. Um deles ficou desacordado, atirado de bruços. Sua cabeça sangrava.
O outro, que parecia mais jovem, se contorcia no chão em espasmos, com os olhos revirados, enquanto vomitava sangue e saliva.
Uma ambulância chegou após cerca de 15 minutos e levou os ladrões para um hospital das redondezas. Foram atendidos com fratura de maxilar e órbita ocular e colocados sob custódia policial.
SEM REGISTROS
Assim como no Brasil, não há dados oficiais sobre linchamentos na Venezuela. Mas especialistas e ONGs dizem que a prática se banaliza. Neste ano a mídia registrou ao menos 40 casos (13 somente no mês de agosto).
Num dos episódios com maior repercussão, moradores de um condomínio de classe média em Valência (a 180 km de Caracas) capturaram, há duas semanas, um homem de 23 anos que tentava roubar peças de carro, itens de grande valor num país assolado pelo desabastecimento.
O rapaz foi despido e amarrado a um poste, antes de ser apedrejado e golpeado até a morte com objetos cortantes.
Em maio, um homem que já havia cumprido pena de prisão por roubo foi esfaqueado e queimado vivo em San Cristóbal, no oeste do país.
"O número real de linchamentos é muito superior ao que entra no radar da imprensa, e a maioria dos casos ocorre no interior", diz o advogado Luis Izquiel, um conhecido criminalista opositor.
Presidente da ONG Controle Cidadão para Segurança, Defesa e Força Armada, Rocío San Miguel se diz surpresa com o avanço da prática.
"Até pouco tempo atrás, havia incidentes isolados, geralmente em represália contra crimes sexuais. Mas linchar por roubo é novidade", afirma a presidente da ONG.
Conversas nas ruas e comentários na internet indicam amplo apoio à prática.
"Lincharam dois ladrões miseráveis. Já estamos fartos de tanta delinquência. As coisas pioram a cada dia", tuitou uma jovem após o incidente em Los Palos Grandes, ecoando a percepção de que se trata de ação legítima diante do misto de violência desenfreada e impunidade.
A Venezuela tem a segunda mais alta taxa de homicídio do mundo depois de Honduras –62 para cada 100 mil habitantes, segundo dados oficiais; seriam 82 por 100 mil, de acordo com a ONG Observatório Venezuelano de Violência (OVV) –no Brasil, em 2014, foram 25,81 assassinatos para cada 100 mil.
Qualquer índice acima de 10 a cada 100 mil é considerado epidemia pela Organização Mundial da Saúde.
Sequestros e assaltos constantes também infernizam o dia a dia no país. Tiroteios são frequentes, inclusive em áreas nobres, criando um clima de pânico.
A maioria dos crimes não é registrada devido a uma percepção generalizada de que a polícia e a Justiça são corruptas e ineptas.
Apenas um em cada dez assassinatos é punido, de acordo com a OVV.
"As pessoas sentem que não vale a pena entregar o criminoso às autoridades porque ele será solto ou irá parar em presídios com discoteca e diversão à vontade", afirma o criminalista Izquiel.
O governo, que não retornou contatos feitos pela Folha, evita comentar essa onda de linchamentos no país.
O presidente Nicolás Maduro costuma alegar que a violência é orquestrada pela oposição com apoio de supostos paramilitares colombianos para semear o caos e jogar a população contra o governo.
Opositores respondem que a segurança pública nunca foi uma prioridade do governo socialista no país.
ILEGAL
O artigo 424 do Código Penal estipula que qualquer pessoa que participar de agressão coletiva deve ser considerada culpado, diz Izquiel. Mas o criminalista afirma nunca ter visto sobreviventes de linchamento entrarem com processo.
"Resolver as coisas por conta própria não só não inibe a ação dos criminosos como pode levar a atos de vingança e mais violência. Tudo isso mostra que somos uma sociedade doente", diz.