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Barbara Gancia

São Paulo, o paraíso das moscas

Tolerância com caçambas de entulho em vias públicas faz a festa das moscas no paisagismo do inferno

Pergunto se estamos vivendo um experimento de realidade distorcida, uma espécie de "Truman Show" de horrores ou um "Big Brother Brasil" dirigido por Pasolini, sem data definida para terminar.

É possível uma princesa italiana como esta que vos fala ir passear em um parque do bairro do Morumbi, em São Paulo, com o intuito de arejar a moleira e voltar para casa para descobrir que pisou em um cocô HUMANO, por Deus do céu? Não quero afastá-lo de mim, meu leitor adorado, nem tampouco causar-lhe asco, mas preciso compartilhar desta dor tão tangível. Diga-me: eu mereço passar por isso?

Quase joguei meu cão pela janela do carro antes de juntar dois mais dois e entender o que se passava na sola do meu tênis barefoot da Nike.

Note que eu tinha ido procurar um parque distante para ver se conseguia ficar um pouco zen. Zen telefonema de cobrador, zen família buzinando na minha orelha e zen pensar no próximo compromisso de trabalho.

Mas, em vez disso, voltei para casa com as quatro janelas do carro abertas e toda picada por moscas. Sim, moscas. Você já notou, meu dileto leitor, que deram para aparecer em São Paulo umas mosconas estrangeiras que antes não moravam aqui? Não sei se vieram visitar do interior, se chegaram com as frutas importadas, em um dos tantos efeitos colaterais da globalização. Só me dou conta de que parecem mais graúdas do que as moscas standard, guardam a tonalidade furta-cor das varejeiras e são maiores do que a insuportável drosófila.

Não que seja expert em moscas, veja bem. Dantanho, eu só mantinha intimidade com a espécie por meio das ilustrações da Enciclopédia Britannica. Mas percebi que ultimamente moscas passaram a brotar de caçambas.

Em uma cidade que falava tanto em lustrar seu visual, que caçambas estacionadas nas ruas ora sirvam de abrigos institucionalizados para ratos e nascedouros para moscas, baratas e formigas poderia ser encarado como um fenômeno digno de registro do Discovery Channel. Ou, quem sabe, de boletins de ocorrência em profusão.

O fato é que a caçamba em São Paulo foi incorporada ao cotidiano quando deveria ser considerada uma excrescência, um atentado contra a saúde pública.

E lá está ela sentada na rua como um cachepô do inferno, como se fosse um achado paisagístico. Caçambas que deveriam ser usadas para conter entulho de obra foram transformadas em lixeiras. Nós fomos tolerando e o prefeito que ganhou eleição em nome da "Cidade Limpa" deu jeito de acomodar esses toscos caixotes enferrujados em rua atrás de rua como se sempre tivéssemos convivido com eles. Agora só falta normatizar: uma caçamba ou duas por via pública. E se não lavar aquela que está na frente da sua casa, tome multa! Do jeito que vai indo, é para esse caminho que apontamos.

É a solução higiênica e de design superarrojado que a prefeitura propõe para lidar com o não recolhimento do seu lixo.

As moscas agradecem. Por uma questão de demanda, nem o dejeto continua o mesmo nem as moscas mudaram. Agora é tudo dobrado dentro, fora e ao redor da caçamba. Afinal, 400 quaquilhões de moscas não podem estar erradas, podem? Bora, Kassab, construir espigão de 25 andares por tudo que é canto.

A cidade, pelo visto, aguenta qualquer desaforo.

barbara@uol.com.br
@barbaragancia

AMANHÃ EM COTIDIANO
Walter Ceneviva

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