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Ela tentou salvá-los da Cracolândia

Como uma estudante de engenharia da USP deixou o conforto de casa para "adotar" três moradores de rua; dois deles viciados em crack

Eduardo Anizelli/Folhapress
A estudante Ossana Chinzarian com os ex-moradores da cracolândia que ela 'adotou': Edson Corrêa (de vermelho), Silvana Aman e Marcos Damasceno
A estudante Ossana Chinzarian com os ex-moradores da cracolândia que ela 'adotou': Edson Corrêa (de vermelho), Silvana Aman e Marcos Damasceno

RAPHAEL SASSAKI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Foi numa quarta-feira quente, dia de protestos em São Paulo, que a estudante Ossana Chinzarian, 25, pulou da cama decidida a dar uma basta no sentimento de solidão que a consumia por seis meses. "Preciso me relacionar com as pessoas de forma mais humana", pensou.

Então, Ossana sentiu a necessidade "urgente de fazer alguma coisa".

Era aniversário de São Paulo. A estudante saiu do Paraíso, bairro da zona sul de São Paulo, onde mora com dois irmãos num amplo apartamento -os pais vivem em Mato Grosso do Sul.

Ela seguiu em direção ao centro, mais precisamente para a cracolândia, com a ideia de engrossar o coro de protestos que aconteciam naquela região contra a ocupação da Polícia Militar.

Quando chegou lá, uma reviravolta tomou conta da cabeça de Ossana.

Enquanto observava parte do cenário em ruínas da Nova Luz, a estudante de engenharia da USP pensou em como poderia ajudar ao menos três moradores que ela logo avistou, com simpatia, assim que chegara à cracolândia.

Resolveu, então, que iria "adotá-los". Ossana conta que não pensou se tal atitude corria o risco de dar errado ou não. Simplesmente, seguiu em frente com o plano.

OS 'ADOTADOS'

Eis o perfil dos "adotados": dois homens e uma mulher com amplo histórico de rua, problemas familiares e envolvimento com drogas.

Marcos Damasceno, 30, mora na rua. O Amaral, como é conhecido, conta que saiu de casa quando tinha dez anos, após repetidas surras do padrasto. Nesses anos, acumulou cicatrizes no rosto e tem dificuldade para articular a fala. Jura, porém, que nunca experimentou crack, apesar da exposição à droga.

Edson Corrêa, 25, viajou a pé do Rio de Janeiro para São Paulo. Ele conta que fugia da violência policial - sem dar detalhes sobre a operação.

Na metrópole paulistana, sonhava em virar rapper. Sem documentos, Edson não conseguiu vaga em albergue. Ficou dois meses na rua.

"Fumava crack para matar a minha fome", afirma Edson.

A terceira "adotada", Silvana Aman, 35, consumia pedras ao lado do namorado, responsável, segundo ela, pelo vício. Morando na rua após cinco anos de uso frequente, ela ficou sem os dentes da boca. Perdeu ainda mais: a guarda das duas filhas.

CASA E COMIDA

"Não acreditei quando aquela 'patricinha' apareceu e sentou no chão com a gente. Achei que, como todos, ela fosse dar uns trocados para nós e ir embora", lembra Edson. "Mas ela ficou."

Não só ficou como a "patricinha" apostou cegamente na recuperação do grupo. "Não vejo diferença entre eu, Einstein ou um morador de rua", diz Ossana. "Não senti medo em momento algum."

Primeiro, a estudante levou os três para a casa.

"Minha irmã chegou e, é claro, não entendeu o que estava acontecendo", conta Ossana. "Ela me disse: 'Sempre aprontando alguma, hein Ossana?" A estudante já havia dormido com uma criança moradora de rua.

À irmã, a estudante de engenharia tratou logo de explicar o que estava acontecendo naquele apartamento. Após a breve explanação, segundo lembra Ossana, os ânimos se acalmaram.

No apartamento da anfitriã, os convidados tomaram banho para, em seguida, se sentarem à mesa para matar a fome. No cardápio, macarrão, feito pela própria estudante. "Todos se comportaram direitinho", brinca ela.

Na sequência, eles se jogaram no sofá diante da TV.

Passava um dos filmes da série de heróis "X-Men", diversão garantida, pensou logo Ossana. Depois, viria "Tropa de Elite 2", com o emblemático capitão Nascimento.

"Gente, desculpa, mas não consigo ver polícia nem na TV", reclamou Silvana.

A próxima ação da estudante da USP foi sair com os três "adotados" para comprar roupa nova na vizinhança.

"Estávamos tão acostumados a ser tratados como bicho que a gente começou a achar que de fato éramos um", conta Amaral, que, assim como os dois colegas, ficou surpreso com a atitude de Ossana.

Naquela hora, seguindo rumo às lojas no Paraíso, os três vestiam roupas velhas, sujas e rasgadas. Ossana, diz, não se importava nem um pouco.

Para animar, a estudante levou a turma, pós-banho de loja, ao show de Ney Matogrosso na praça da República, no centro. Era festa em comemoração ao aniversário de São Paulo. Os quatro foram juntos de metrô.

No manhã seguinte, acompanhou os "adotados" até o Brás. No PAT (Posto de Atendimento ao Trabalhador), Marcos, Edson e Silvana foram encaminhados para entrevista de emprego.

Ossana fez mais: alugou um apartamento no bairro.

A estudante fechou o contrato do imóvel por três meses. Ela mesma pagou as parcelas adiantadas, cada uma delas no valor de R$ 600.

"Em 25 anos morando na rua, a única pessoa que fez alguma coisa por mim foi um pastor, que me levou para a casa dele e me deu roupa e comida", lembra Amaral.

Em contrapartida, Ossana fez uma única exigência aos três: que eles largassem o vício, a rua e recomeçassem, a partir dali, uma nova vida.

Amaral soube aproveitar a oportunidade. Foi contratado como ajudante de ferreiro -primeiro emprego em anos.

Ganha R$ 600/mês, suficientes para pagar o aluguel após os três meses de dívida quitada pela colega Ossana.

Nem todos tiveram a mesma reação que a dele.

SÓ AMOR NÃO BASTA

Em crise de abstinência, Silvana desapareceu de casa.

Até ontem à noite, ela não havia retornado. Ninguém sabia sobre seu paradeiro.

Edson reencontrou o crack dias depois de instalado na casa do Brás. Roubou um vizinho (R$ 250) e fugiu com o que encontrou pela frente, roupa e objetos que Ossana tinha colocado na decoração do imóvel dos colegas.

"É claro que eu não imaginava que isso fosse acontecer", confessa Ossana. "Tudo isso me deixou muito triste."

A estudante conta que ficou decepcionada com o comportamento dos outros dois "adotados".

Mas longe dela pensar em desistir. "O crack é foda", diz. "Não dá para achar que só amor e atenção resolvem."

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