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Jairo Marques

A vontade de viver

Quem sou eu para projetar fracasso naquele 'serumano' que, aos meus olhos, só vive deitado em uma cama

No relatório médico, não havia vacilo nem piedade: "São 5% as chances de sobrevivência. Funções vitais mantidas por aparelhos".

A jovem vítima tinha um coágulo no cérebro, fraturas na coluna, machucados profundos pelo corpo, o sistema respiratório comprometido.

Por fim, mergulhada em estado de coma. Se existisse algo que pudesse representar o "praticamente morta", seria ela.

Quantas vezes já me peguei dizendo ou pensando que seria melhor que aquele cidadão, cheio das dores, das impossibilidades, das dependências e das urgências médicas, pedisse para desistir da brutal batalha por seguir adiante. Não vale a pena tanto sacrifício...

Viver bem tem de implicar valores óbvios que, quando não encontrados na panela, na conta bancária ou no esqueleto, tornam o indivíduo muito vulnerável para seguir adiante na concepção comum.

Acontece que, nas análises da realidade alheia, costuma-se deixar de lado um valor básico: a vontade de continuar, de viver. Quem sou eu para me dar o direito de projetar fracasso e angústia naquele "serumano" que, aos meus olhos, só vive deitado em uma cama?

Juntem-se a isso práticas da medicina tão modernas que são capazes de drenar, devagarinho, o sangue que ameaçava as sinapses, curativos potentes que refazem a pele, aparelhos que estimulam o corpo da tal garota lá do primeiro parágrafo, que, apesar de todos os indicativos de morte, está viva.

A vontade de viver é tão ou mais poderosa do que a obstinação dos que desejam morrer. Mas reconstruir-se demanda, evidentemente, muito mais mão de obra, cimento e rejunte do que botar tudo abaixo.

Talvez por isso haja um certo ceticismo quando se vê o desafio dos que têm "um câncer terrível", a recuperação do velho que foi internado, a renovação do cotidiano, do agora tetraplégico garotão que mergulhou de cabeça naquele riacho durante o Carnaval (mergulhe sempre, sempre em pé, em lugares que não conheça).

Mas é necessário considerar que a vontade de viver corre risco de sucumbir se for amparada apenas no desejo de si mesma, apenas nas moderníssimas práticas médicas de restabelecimento.

Para elevar os 5% de condições de sobrevida para um patamar de menos aflição -para a família, para os amigos, para os próximos-, é preciso aceitar a força de elementos nem sempre mensuráveis, como a dose de morfina que irá amenizar a dor.

Então, é fundamental juntar gente em torno da fé no possível (ou das energias, tanto faz). E, atualmente, com o mundo conectado em redes, unir as pessoas em torno de um propósito legítimo me parece bem descomplicado. É preciso voluntarismo que ceda disposição para ser um bocadinho daquele que não possa fazer isso ou aquilo.

As fatalidades vão continuar acontecendo -valem os alertas contra a velocidade, a bebedeira e os excessos no feriadão-, as doenças vão seguir acometendo pessoas, as vulnerabilidades em decorrência da idade vão bater à porta. Mas sou do time que aposta que a vontade de viver tem de ser reverenciada e incentivada sob qualquer condição.

jairo.marques@grupofolha.com.br
@assimcomovc

AMANHÃ EM COTIDIANO
Antonio Prata

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