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60 anos de salão

Ático veio para SP no final dos anos 1940 para juntar uma grana e voltar para a Bahia. Por 37 anos, trabalhou no extinto restaurante Ca'd'Oro. Há 23 anos, está no Grupo Fasano

(...) Depoimento a

ROBERTO DE OLIVEIRA
DE SÃO PAULO

RESUMO: Semianalfabeto, Baianinho, como era chamado pelos colegas, arranjou o primeiro emprego como "rala-pescoço" -servente de pedreiro- na Lapa, em São Paulo. Rapidamente, foi convidado por um restaurante e boate no centro da cidade para cuidar da faxina. Não demorou e Ático "migrou" para o balcão do bar. Mas foi fora dali que ele encontrou sua verdadeira vocação. Tornou-se garçom de um dos restaurantes mais famosos de São Paulo e logo chegou a maître. Como ele próprio gosta de dizer, serviu de reis a plebeus.

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Meus padrinhos pediram aos meus pais para me criarem. Papai recusou o convite. Disse que a oferta era apenas a do batizado.

Criado por eles, talvez tivesse sido um professor ou um advogado, duas profissões que, confesso, admiro muito. Mas o destino traçou outro caminho para mim.

Mamãe teve 18 filhos, 12 sobreviveram. Papai morreu seis anos depois que nasci, então mamãe teve que puxar enxada no sertão baiano para cuidar de toda a família.

Estudar? Infelizmente, era luxo naquela época. Eu mesmo só tive 45 dias de escola.

A roça não ia para a frente. Em 1949, decidi vir para São Paulo. Quando cheguei, a cidade não tinha, sei lá, 2 milhões de habitantes. Os meus olhos corriam e alcançavam somente seis prédios.

Queria eu arrumar emprego, juntar um dinheirinho e voltar para o sertão. Uma dívida me esperava na lavoura.

Logo fui trabalhar no bairro da Lapa como "rala-pescoço": carregava latas de argamassa no ombro que iam ralando o pescoço o dia todo. Menos de um mês, lá fui eu para o centro de São Paulo, cuidar da faxina de um misto de restaurante e boate.

O barman faltava sempre. Então, eu ajudava os garçons. Um dos clientes era Getulio Vargas. Não cheguei a atender o homem diretamente porque fiquei com medo, mas preparei a bandeja dele.

De 1952 a 1954, fui para o Fasano. Na época, quem cuidava de lá era Ruggero Fasano [avô de Rogério Fasano]. Era um misto de confeitaria com restaurante. Fazia cobrança, entregava correspondências.

Um irmão que trabalhava no restaurante Ca'd'Oro saiu para voltar à Bahia. Assumi o lugar dele. O Ca'd'Oro foi a minha casa, o lugar onde eu aprendi muito, onde atendi de plebeus a reis.

De cumim, passei para garçom. Depois, para maître.

Se mal falava português, imagine então inglês ou francês. Italiano aprendi de tanto ouvir. Com o tempo -foram 37 anos-, decorei todo o cardápio em inglês.

Só que a casa, como posso dizer, não fazia mais tudo aquilo que fazia antes, sabe?

Voltei para o Fasano como recepcionista. Um ano depois, o Rogério me chamou para acompanhar o bollito, cozido italiano feito de carnes e legumes, no restaurante Parigi. Esse prato é uma homenagem ao passado, um símbolo da tradição. Foi durante anos o preferido por pelo menos dez presidentes da República, por políticos e pela alta sociedade paulistana.

De segunda a sexta, trabalho no lobby do hotel. Às quartas e aos domingos, lá ia eu para o Parigi. Tudo por causa do bollito, que vem dos meus tempos de Ca'd'Oro. Tem uma clientela tradicional que só vai ao Parigi por causa do cozido.

Estou onde estou por causa dos meus clientes. A clientela em primeiro lugar.

Hoje, a alta gastronomia, tão importante em São Paulo, me deixa meio confuso. Sinto saudade daquele tempo em que o garçom participava do prato, era uma espécie de complemento. Preparava na mesa. Ajudava a servir. Era uma alegria.

Não reclamo de São Paulo. Aqui foi minha escola, aqui, ganhei formação profissional, de vida. Aqui, conheci minha mulher, Dolores, comprei uma casa na zona norte, uma chacarazinha no interior, criei filhos, tive cachorros, netos e bisnetos.

Ajudei toda a minha família na Bahia, onde hoje estão dois irmãos: a Maria, de 105 anos, e o José, de 102.

Quando lembro que meu pai, rapaz de opinião forte, filho de índio, não quis me dar para os meus padrinhos, penso em mamãe. Ela se foi aos 96 anos em 1982. Mas consegui ajudá-la. Dou todo o valor do mundo ao bem mais precioso da minha vida: nunca ter me separado da minha mãe [nesse momento, Ático se emociona e chora].

Estou na curva do bico, mas não quero parar de trabalhar. Faço pela minha mulher. São 55 anos de casados. Velho é rabugento. Imagina então dois velhos juntos?

Enquanto o Rogério Fasano me aceitar, vou estar aqui. Chego de ônibus e volto de ônibus. Com o carro, acabava me atrasando. E cada dia volto para casa com alguma coisa que aprendi, aqui, matutando na minha cabeça.

Sou um homem feliz.

FOLHA.com

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