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Bichos

JAIME SPITZCOVSKY cjaimespitz@uol.com.br

A despedida do meu amigo Yura

Era um samoieda que, na sua compleição, honrava as tradições de cão siberiano de trabalho

Acabo de voltar do pronto-socorro. Perdi o Yura, adorável e bonachão samoieda que havia completado 12 anos em janeiro passado. O quadro de saúde dos últimos anos representava um desafio que ele superava com maestria. Driblava diabetes e tentava ignorar um câncer insistente em cercar o fígado.

Aparentemente, o tumor se rompeu. Só assim conseguiu vencer esse intrépido cão das neves, já adaptado a uma vida mais temperada. Yura, que é o diminutivo em russo do nome Yuri, sempre primou pela intensidade. O adestrador, na infância, apelidou-o de "Furacão", pois partia para o passeio como uma intempérie.

Era o oposto do pai, Vássia, cão que, apesar das raízes siberianas, tinha comportamento de lorde inglês. Enquanto a figura paterna exalava elegância, o filho era um destrambelhado. Certa feita, Yura se aproveitou de um esquecimento da empregada e escapuliu pelo portão.

Saiu em disparada pelo condomínio onde morávamos. Passou a explorar diversas casas. Numa delas, caiu na piscina. Conseguiu sair sozinho, encharcado e com a pelagem branca escorrida. Conseguiu também assustar os moradores, pasmos com a visita e o mergulho inesperados.

Depois disso, Yura desenvolveu trauma de piscina. Bastava mergulharmos, em nossa própria casa, que ele se afastava. Buscava um esconderijo que o protegesse das péssimas lembranças da invasão à casa alheia.

O "Furacão", em casa, ganhou o carinhoso apelido de "Gordo". Era um samoieda que, na sua compleição, honrava as tradições de cão siberiano de trabalho. Tinha músculos de sobra para ser exímio puxador de trenós, e sempre acalentei o sonho de levar meus companheiros de origem russa para uma viagem a paragens nevadas. Imaginava todos num trailer rumo à Patagônia. A intenção jamais saiu do papel.

Conheci os samoiedas quando morei em Moscou, nos anos 1990, trabalhando como correspondente desta Folha. A raça foi domesticada por uma etnia nômade da Sibéria, os nenets, a fim de auxiliá-los no pastoreio de renas, como puxadores de trenós, como alarme contra ameaças ou mesmo para, juntos, humanos e seus amigos peludos se aquecerem e enfrentarem o frio ártico.

Os samoiedas, portanto, adoram o contato com seus donos. Certa vez, resgatei um filhote da raça que ficava confinado à área de serviço de um apartamento. O animal enfrentava dois enormes castigos: a distância dos humanos e a falta de espaço para se exercitar e liberar a energia de um cão historicamente habituado a puxar trenós.

Yura, com sua energia explosiva, dava de ombros às limitações que a saúde teimava em impor. Diabetes, responsável pela aplicação de insulina duas vezes ao dia e consumo apenas de ração especial, roubou-lhe a visão. Uma cirurgia bem-sucedida devolveu ao cão parte significativa da capacidade de enxergar.

Ontem, foi muito duro despedir-me dele. Minha última foto do Yura mostra-o tomando conta da Dodó, nossa tartaruga tigre d'água. Tentei cuidar dele com o mesmo zelo que ele mostrava por sua amiga de casco esverdeado.

AMANHÃ EM COTIDIANO
Francisco Daudt

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