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Pasquale Cipro Neto

'Tinha sido planejado há dois meses'

No dia a dia a forma "havia" é substituída por "há", que, na prática, funciona como partícula intemporal

VOLTA E meia leitores me pedem comentários sobre o emprego da forma verbal "havia" em frases como "Eles namoravam havia onze meses" ou "O contabilista trabalhava no escritório havia oito anos". Alguns leitores chegam a perguntar se isso é "novidade", "regra nova" etc. Já me perguntaram até se é coisa das "últimas mudanças na língua portuguesa".

Antes de irmos ao ponto, talvez seja melhor (re)lembrar que o que muitos chamam de "mudanças na língua portuguesa" é a reforma ortográfica, que, como o nome já diz, alterou a grafia de algumas palavras. Pela enésima vez, convém deixar claro que língua é uma coisa, e ortografia é outra.

Mas voltemos à questão da forma verbal "havia" e das construções citadas no parágrafo inicial desta coluna. Como já afirmei neste espaço (mais de uma vez), na língua do dia a dia a forma "havia" é substituída por "há", que, na prática, funciona como partícula intemporal. São comuns na oralidade e também em vários registros escritos construções como estas: "Ela morava em Lisboa há seis anos" ou "Ela não via meu primo há quatro anos". Esse uso é tão frequente o "ABC da Língua Culta", de Celso Luft, diz o seguinte sobre "há": "Forma do verbo haver, significando: 1. Faz ou fazia: Há um ano que não o vejo. Há um ano que tinha desaparecido (melhor, coordenando os tempos: Havia um ano que tinha desaparecido)".

Luft diz que é "melhor coordenando os tempos" porque em certos casos a diferença entre "há" e "havia" é fundamental para o estabelecimento da adequada correlação entre as formas verbais e/ou para a transmissão da mensagem que efetivamente se quer passar.

Posto isso, peço-lhe que leia esta frase, publicada num site: "Os acusados foram presos, e descobriu-se que o estupro tinha sido planejado há duas semanas". Releia-a e pense um pouco nela, caro leitor.

Pensou? Que me diz a respeito da relação entre "tinha sido planejado" e "há duas semanas"? Bem, se levarmos em conta que no uso efetivo da língua "há" e "havia" se igualam, a relação citada passa sem grandes problemas, mas, se pensarmos sob o rigor da correlação, veremos que talvez fosse melhor fazer casar "há" com "foi planejado" e "tinha sido planejado" com "havia". Vejamos: "Descobriu-se que o estupro foi planejado há duas semanas"; "Descobriu-se que o estupro tinha sido planejado havia duas semanas" (="Descobriu-se que fazia duas semanas que o estupro tinha sido planejado").

Sob o rigor da correlação verbal, que diferença há (em termos concretos) entre construções como as duas que fecham o parágrafo anterior? Vamos lá: quando se diz, por exemplo, que fulano foi preso há dois meses, diz-se que ele foi preso dois meses atrás, ou seja, dois meses antes do momento em que se diz a frase (se a frase é/foi dita hoje, a prisão se deu dois meses antes de hoje).

Quando se diz que fulano tinha sido preso havia (= fazia) dois meses, não se toma como ponto de partida o momento em que a frase é dita, mas outro, anterior. Se se fala de um furto praticado por fulano no dia 20 de março e se diz que ele tinha sido preso e imediatamente solto havia dois meses, informa-se que a prisão e a soltura se deram dois meses antes do furto, ou seja, dois meses antes de 20 de março (20 de janeiro, no caso).

O que vimos aqui talvez não mude o preço da gasolina ou o do feijão, mas num inquérito policial ou nos autos de um processo pode fazer uma grande diferença. É isso.

inculta@uol.com.br

AMANHÃ EM COTIDIANO
Barbara Gancia

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