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Barbara Gancia

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Dalla mefistofélico para suas negas

Conheci o cantor em Sumaré (SP): era assustado feito um hamster; quase lhe pedi algo para molhar os lábios

DIGAMOS QUE Chico Buarque viesse a morrer. Não será tão cedo, conto com isso. Assisti ao seu show e o vi vibrante feito um meninão de 18 anos. Faço a pergunta apenas para efeito de comparação. Chico tem lá sua visão singular sobre as questões da política, mas, se batesse as botas, o país inteiro iria se unir para chora-lo.

Os brasileiros não acreditam em Cuba como modelo a ser imitado. Mesmo assim, na morte, Chico não seria atropelado por sua defesa do regime cubano como está sendo Lucio Dalla, 69, na Itália por sua passagem "al di là". Comentando o enterro do italiano nesta semana, uma jornalista ("giornalista") da RAI afirmou: "O sepultamento de Lucio Dalla é um exemplo dos mais fortes do que significa ser gay na Itália. Vai-se a igreja, concedem-se os funerais e sepultam com rito católico desde que não se admita tratar-se de um defunto gay". Nesse sentido, quem ajudou a cavar a sepultura foi o próprio músico.

Conheci Lucio Dalla em Sumaré, interior de São Paulo, na fazenda da família Bourdon -do frigorífico- e o revi algumas vezes depois. Ele era enfiado nas paredes; custei a perceber que se tratasse do cantor e compositor de sucessos como "Caruso" e "Piazza grande".

Na primeira vez, quase ia pedindo que me trouxesse uma linguicinha e algo para molhar os lábios. Pareceu-me assustado qual um hamster. Em retrospecto, acho que só fui saber que era gay no anúncio fúnebre -mais enfiado no armário era impossível.

Via-se logo que era gentil, mas meio fora de prumo. O cabelo era empastado de brilhantina -para que tanta? Trasbordava também de timidez. Talvez fosse tão acanhado por medir pouco mais de 1,50 metro, talvez por estar no meio da grã-finada paulista. Ou por ser gay. Ou por ser feio e tampinha, vai saber. O fato é que bastou empacotar para que a Itália reagisse aos berros. Aliás, a Itália esta se especializando no papel da eterna descompensada. Lega Nord, Berlusconi, navio que afunda... O que virá a seguir? Goebbels? Simmler? Eichmann?

O cantor da melosa "Felicità" (uma de minhas preferidas, confesso), que no seu pais é equivalente em estatura a Chico Buarque (embora, na minha modestíssima, eu só veja Cole Porter como páreo para Francisco), foi caluniado de tudo que é jeito.

Um jornal de extrema direita o chamou de mefistofélico; sua música foi classificada como "máquina diabólica para alienar a dignidade da população"; disseram que ele teria colocado o sexo em um plano mais elevado que o trabalho (sim, pois não); acusaram-no de promover a miscigenação (como se houvesse demérito aí) e até de ser um "ilusionista" que teria usado o dialeto para esconder sua origem bolonhesa.

O massacre é vulgar. Camarada nem ao menos se notabilizava por uma consciência política das mais apuradas. Sabe-se que tinha apreço pelo sul da Itália e que fazia pela integração de um país fragmentado.

Está certo que conviver com o Vaticano nos calcanhares não é fácil. Mas a cada dia fica mais evidente que a unificação da Itália não juntou patavinas. E que o provincianismo encapsulou o país no século 18.

Mefistofélico, que eu saiba, foi o tratamento dado ao companheiro de Dalla, Marco Alemanno, 32, praticamente escondido atrás da cortina durante a cerimônia de adeus ao cantor. Resta saber se Lucio Dalla estaria de acordo e se a Itália de glória, que mora na alma, tem como ser reparada.

barbara@uol.com.br
@barbaragancia

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