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Pasquale Cipro Neto

'Não gosto do negro só porque ele é...'

Não basta ser X para que se goste de X, o que seria óbvio, mas não é quando imperam o preconceito e a patrulha

CALMA, CARO leitor! Calma! Calma, sobretudo se você for dos embotados pelo intragável "politicamente correto". O título desta coluna está no início da belíssima canção "A Pessoa", do paulistano Celso Viáfora. Diz a letra: "Não gosto do negro só porque ele é negro / Gosto de Maria do Rosário e de Diego / (...) Não gosto do novo só porque ele é novo / Eu como granola como como pão com ovo / Não gosto do velho só porque ele é velho / Tô tanto na Net quanto procuro no Aurélio...".

Celso me disse que, nos seus shows, começa a canção com a primeira frase e para (eta vontade de lascar um agudo nessa forma verbal, estuprada pela insana reforma ortográfica). A reação do público é heterogênea: alguns, talvez já conhecedores da canção, entendem a provocação; outros fazem caras e bocas...

O fato é que a frase em si, descontextualizada, é ambígua. A "culpa" dessa ambiguidade é do advérbio "só", cuja posição permite mesmo duas leituras. Já sabe quais são, não? Vamos lá: duma das leituras se depreende que o emissor não gosta do negro, e a razão desse não gostar é simples (e preconceituosa): o negro é negro. Da outra leitura se depreende que não basta a um ser humano ser negro para que o emissor da frase goste dele.

Aliás, como se viu pelos outros trechos que transcrevi, a letra da canção de Celso Viáfora vai toda nesse tom: não basta ser X para que se goste de X, o que, teoricamente, é o óbvio, mas deixa de sê-lo quando imperam o preconceito e a patrulha, ou seja, a burrice. Sim, porque achar que se deve gostar de X só porque X é X é agir ou pensar burra e hiperpreconceituosamente.

Não pense o caro leitor que essa patrulha boboca é "privilégio" dos tempos hodiernos, nascida com o "politicamente correto". Ela vem desde sempre. Lembro que nos meus tempos de universidade era proibido gostar de Olavo Bilac, por exemplo, "um fascista" e outras bobagens que a caterva vociferava. Para confirmar que alguém era "legal" e abrir-lhe o trânsito, bastava dizer que o dito-cujo era "de esquerda". Tudo e todos eram assim, rotulados, pré-rotulados. Na verdade, ainda são (e, pelo jeito, sê-lo-ão até sabe Deus quando).

Corajosa, essa canção de Celso (que faz parte do belíssimo DVD "Batuque de Tudo") põe o dedo numa ferida ainda exposta, mal curada, mal resolvida. Na canção "Que Nem a Gente", do mesmo DVD, Celso continua no tema: "Parente não é tudo nepotista / Compositor não é tudo ruim da ideia / A bomba da Coreia / não é tudo mais que a bomba do Ocidente / Todo mundo é meio assim que nem a gente: / tudo igual mas muito diferente". Muito bom...

O leitor habitual deste espaço certamente notou que este texto continua a conversa iniciada na semana passada. Minha intenção é a de sempre: instigar o leitor/aluno a pensar, a refletir, a entender o que lê, sem julgamentos prévios. Em muitos casos, o conhecimento da língua pode ser fundamental para afastar interpretações funestas ou ao menos contemplar a possibilidade de outra interpretação. É nesse caso que se insere a frase que abre a letra da canção de Celso. O uso de palavras como "só", "somente", "também", já abordado aqui diversas vezes, volta e meia é tema de questões de importantes vestibulares. Devagar com o andor, pois.

Em tempo: o primoroso DVD de Celso Viáfora é daqueles que se veem/ouvem de joelhos, com o encarte e um lenço nas mãos. Algumas das canções são comoventes -"Quando Vi Meu Pai Chorar", por exemplo, dói na alma, no coração e na mente. Evoé, Viáfora! É isso.

inculta@uol.com.br

AMANHÃ EM COTIDIANO
Barbara Gancia

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