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Na ponta dos pés

Do Jardim São Luís à Vila Mariana, os saltos e os percalços de Geyza Pereira, 26, a estudante de balé com deficiência visual que virou professora

Marisa Cauduro/Folhapress
Geyza na associação de Ballet e Artes para Cegos Fernanda Bianchini, onde aprende e dá aula
Geyza na associação de Ballet e Artes para Cegos Fernanda Bianchini, onde aprende e dá aula

FILIPE OLIVEIRA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

São muitos os percalços no caminho da bailarina Geyza Pereira, 26. Às 5h, ela cai da cama, toma um rápido café da manhã e arruma as sapatilhas na mochila. Sai com a ajuda da mãe, a dona de casa Gilvani Pereira, 43.

O primeiro obstáculo fica logo na porta: uma pequena escada do lado de dentro tem o degrau mais alto estreito, mal cabendo dois pés. Este repórter, deficiente visual como ela, quase tropeçou ali.

Mãe e filha saem. Sobem juntas uma escada de 70 degraus. No alto, têm de caminhar pela rua. A calçada é cheia de degraus e buracos.

Geyza mora no Jardim São Luís, extremo sul de São Paulo. Leva duas horas todos os dias para ir e voltar da Associação de Ballet e Artes para Cegos Fernanda Bianchini, na Vila Mariana. Lá, Geyza é professora de balé -as alunas também são deficientes visuais, com idades que variam dos 8 aos 50 anos.

Chega o ônibus, mãe e filha se despedem. Antes de o veículo partir, um lugar é cedido. "Não ando a pé sozinha por aqui. Tenho medo de cachorros e drogados", conta.

Parada no terminal Capelinha. Geyza pede ao motorista que a conduza até o próximo ônibus. Ele a leva por alguns metros, ela segurando em seu cotovelo. Há um ônibus de saída. Está lotado. Geyza prefere dar um tempo e esperar pelo próximo. Sem estresse, sorri: "Eu indo em pé? Que horrível, heim?"

O ônibus anda devagar. Geyza percebe um silêncio estranho: "Está todo mundo curioso, prestando atenção na gente", diverte-se.

Reconhece o caminho pelas curvas que o ônibus faz pelo trajeto. Levanta-se quando está a três pontos de descer e pede ao motorista que a deixe na escola. São 8h.

Aprendeu a pegar ônibus sozinha com 14 anos. Durante a semana, dormia na escola, o Instituto de Cegos Padre Chico. Já aos sábados, precisava ir sozinha às aulas de balé. "Não tive medo. Minhas amigas faziam metade do caminho comigo", conta ela.

Desce e percebe que está na frente da doceria. Vira à direita e procura a entrada da escola, batendo a bengala nas paredes a sua esquerda.

Geyza anda empolgada. Ensaia para ser a princesa Aurora no balé "A Bela Adormecida". Apaixonada por princesas, insistiu com a professora para dançar no papel. Será o maior desafio de sua carreira, conta, para emendar em seguida: "Ninguém facilita nada por eu ser cega".

Ela é uma menina vaidosa. Tem as unhas pintadas de roxo. Faz questão de mostrar as flores desenhadas nelas e as pedrinhas de strass que são sentidas com a ponta dos dedos. "Olha, mas tem professoras que não gostam."

Quando ficou cega, aos nove anos, achou que nunca poderia dançar. Um ano depois, disse isso para Fernanda Bianchini, quando foi convidada a fazer aulas.

Geyza aprendeu a dançar sentindo os toques delicados da professora nos pés, pernas, braços, ombros e pescoço. Já dançou em sete Estados, em Buenos Aires e em Nova York. Um dia da vida de Geyza é o tema do curta "O Tigre e o Cisne", exibido hoje, às 19h30 pelo Sesc TV.

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