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Pasquale Cipro Neto

'Não creu ni eu, se finou-se'

Quem sabe dizer, de bate-pronto, de quem é a letra de "Carinhoso", que o povo acha que é de Pixinguinha?

Dos mais de duzentos personagens do grande Chico Anysio, o meu favorito é o genial "Bento Carneiro", o impagável "Vampiro Brasileiro". Um dos bordões do vampiro se tornou popular e eterno: "Não creu ni eu, se finou-se". Aliás, ver seus escritos caírem na boca do povo é a glória das glórias para quem escreve, ainda que o povo (quase sempre "desatento") não saiba de quem são os escritos ou os ditos.

Quem é que sabe dizer, de bate-pronto, de quem é a letra de "Carinhoso", errada e preguiçosamente atribuída pelo público e por jornalistas, radialistas etc. a Pixinguinha, que é o autor da melodia? A letra é de João de Barro, o Braguinha. Para obter a informação, basta ler nos selos, nos encartes e nas contracapas dos discos o que está nos parênteses que vêm depois do nome da música.

Quantas vezes vejo por aí camisetas em que se leem os versos que abrem a "Canção da América" ("Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves, dentro do coração") atribuídos a Milton Nascimento, que é o autor da bela melodia. A letra é do querido Fernando Brant, mas para saber isso é preciso um baita esforço (ler os parênteses -ai, que preguiça!).

Brant confirma o que afirmei no fim do primeiro parágrafo. Modesto, diz que não se importa que atribuam ao melodista a autoria dos versos que ele, poeta, lavra. "Basta que cantem por aí, para todo o sempre", diz o autor da letra de "Maria, Maria", "Travessia", "Nos Bailes da Vida" e tantas outras maravilhas.

Mas voltemos ao "Vampiro Brasileiro" e seu impagável bordão. Valendo-se da sintaxe popular, presente, por exemplo, quando o pronome reto "eu" assume a função de complemento verbal indireto (tanto de "creu", em "Não creu ni eu", quanto de "ri", em "E, para quem ri de eu, minha vingança sará maligna"), Chico Anysio confere a seu personagem legitimidade, realismo. A legitimidade e o realismo obviamente não se manifestam só pela linguagem e pela sintaxe; manifestam-se sobretudo pela carnavalização, pela deformação e pelo exagero que compõem o inesquecível personagem.

Chama a atenção a flexão verbal "creu", que, embora não seja comum no uso oral urbano, ocorre em alguns dialetos rurais. Essa forma nada mais é do que a terceira do singular do pretérito perfeito do indicativo do verbo "crer". É bom deixar claro que "creu" ocorre tanto no padrão formal da língua, sobretudo na escrita, quanto em algumas variedades dialetais.

E como é a flexão completa do pretérito perfeito de "crer"? Vamos lá: "eu cri, tu creste, ele creu, nós cremos, vós crestes, eles creram". Eu cri? Sim, eu cri, assim como de "ler" se faz "eu li" e de "ver" se faz "eu vi". O fato é que, embora "explicável", a forma "cri" é daquelas que a gente vê ou ouve tão pouco que, quando vê ou ouve, para para pensar.

Sentiu falta do acento na forma verbal "para", caro leitor? Agradeça aos deuses do "(Des)Acordo Ortográfico". Aliás, por falar em "(Des)Acordo", fui convidado pela Comissão de Educação do Senado para participar, como expositor, de uma audiência pública sobre o glorioso. Na coluna da semana que vem, relatarei aos leitores os desdobramentos dessa audiência.

Voltando aos bordões de "Bento Carneiro", imagino que não seja exagero afirmar que, por enquanto, a "vingança" dos povos lusófonos é mesmo "maligna". Refiro-me ao "(Des)Acordo Ortográfico", ainda solenemente ignorado, desprezado e condenado por significativa parcela dos lusoparlantes. É isso.

inculta@uol.com.br

AMANHÃ EM COTIDIANO
Barbara Gancia

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