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Filha abandonada diz que só queria conversar um 'pouquinho' com pai

Professora que ganhou indenização por não receber afeto afirma que ainda pensa em reconciliação

Luciane Oliveira conta que procurou diversas vezes o pai e que chegou a passar dificuldades financeiras com a mãe

LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A SOROCABA

Dezenas de vezes a menina Luciane Nunes de Oliveira Souza tocou a campainha da casa do pai, em Sorocaba, no interior de São Paulo. "Eu só queria conversar um pouquinho", lembrou ela ontem. Todas as vezes, segundo seu relato, engoliu a frustração de não ser atendida. E voltava para casa chorando.

Fruto de um relacionamento de mais de oito anos entre o empresário Antônio Carlos Jamas dos Santos e a enfermeira Maria Olinda Nunes, Luciane nunca ouviu o pai chamá-la de filha.

Nunca recebeu um abraço dele. Nunca teve colo. Nunca um carinho. Nunca recebeu dele um conselho.

Aos dois anos, a menina teve uma suspeita de apendicite. No total, foram dez dias de UTI. Chamado para ver a filha, o pai não foi.

Nesta semana, veio a público a decisão inédita do STJ (Superior Tribunal de Justiça), determinando que Santos pague indenização de R$ 200 mil por ter submetido a filha a abandono afetivo.

Hoje professora da rede municipal de Sorocaba, casada, mãe de um menino de seis anos, Luciane, 38, chorou várias vezes durante a entrevista que concedeu no escritório de seu advogado, João Lyra Netto.

Mas disse estar feliz. "Há milhões de pessoas que abandonam seus filhos, que os rejeitam. A Justiça está mostrando-lhes que isso é errado. Que todos devem assumir suas responsabilidades quando colocam inocentes no mundo", afirmou.

Segundo Luciane, o pai a assumiu como filha apenas depois de sua mãe ter entrado com pedido de reconhecimento de paternidade. Forçado por um exame de DNA, ele começou a pagar pensão de dois salários mínimos.

Até que isso acontecesse, porém, mãe e filha passaram um período difícil. Sozinhas, as duas tiveram de ir morar de favor em um cômodo nos fundos de um hospital, ao lado do necrotério. Para comer, lembra Luciane, era só arroz e polenta.

As dificuldades para criar a menina eram tantas que a mãe chegou a levá-la a um orfanato. Mas desistiu de dá-la em adoção. "Eu sempre me senti excluída e abandonada porque meus irmãos [por parte de pai] tiveram tudo e eu nunca tive nada", disse.

O pai de Luciane, dono de distribuidora e de postos de gasolina, casou-se depois de se separar da mãe de Luciane. Teve três outros filhos.

O relatório da ministra do STJ Nancy Andrighi cita o "desmazelo do pai em relação a sua filha", "a ausência quase que completa de contato com a filha" e "o descompasso de tratamento outorgado aos filhos posteriores" como vicissitudes que Luciane passou.

"Não se pode negar que tenha havido sofrimento, mágoa e tristeza, e que esses sentimentos ainda persistam, por [Luciane] ser considerada filha de segunda classe", apontou.

Ontem, Luciane lembrou que passou toda a infância sonhando que um dia o pai a procuraria. Como isso não acontecia, procurava-o.

"Procurei na minha infância, procurei na adolescência. Procurei quando fazia aniversário. Quando fui casar, liguei para ele. Quando meu filho nasceu, eu o encontrei em um restaurante e fui apresentar-lhe o bebê, quis dar para ele segurar no colo. Eu disse: 'Ainda dá tempo para a gente...' Ele não quis."

A menina nunca teve contato com os três irmãos por parte de pai. "Já nos encontramos, mas eles não dirigem a palavra a mim. Quando eu aparecia no portão da casa deles ou telefonava, era escorraçada. Mas eu insistia. Uma vez, a mulher do meu pai atendeu. Disse para eu desaparecer e me xingou de vagabunda. Eu tinha 11 anos."

Na escola, quando chegava o Dia dos Pais, ela fazia o presentinho e não sabia para quem dar. "'Você vai fazer o seu presente para mim', minha mãe respondia", lembra. Uma reconciliação? Ela admite. "Eu acho que nunca é tarde demais", insiste.

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