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Antonio Prata

Libera a guitarrinha!

Eu podia estar de pochete, de moletom, palitando os dentes, mas tô só aproveitando a vida

Então, no último sábado, depois de dez anos de repressão, dez anos de autocontrole e sofrimento, durante os quais curvei-me aos ditames do recato e do bom gosto, liberei a guitarrinha. Estou falando daquele gesto, ou melhor, daquele hábito, tão execrado pelas mulheres quanto adorado pelos homens, de tocar uma guitarra imaginária na pista de dança.

De uns tempos para cá, deram pra chamar a firula de "air guitar" e existe, inclusive, o "Air Guitar World Championship", disputado todo ano em Oulu, na Finlândia (migre.me/9atst), mas campeonatos de air guitar estão para a guitarrinha como Wimbledon para o frescobol: quando os primeiros acordes de "Satisfaction" soam pelas caixas da festa, a última coisa que passa pela minha cabeça é a perfeição dos movimentos, é superar os comparsas que, de olhos fechados e empunhando Fenders inexistentes, vivem seus momentos de Keith Richards, levando milhares de pessoas ao delírio nos estádios lotados de suas fantasias. Pois guitarrinha, meu caro, é entrega. Entusiasmo. Guitarrinha -eu digo de boca cheia, sem medo do clichê- é emoção.

É por isso -aliás, percebo agora- que as mulheres ficam tão incomodadas com essa nossa prática lúdico-patética. Pois, por maiores que tenham sido suas conquistas nos últimos cem anos, por mais emancipadas que estejam, ainda querem, no fundo, um homem controlado e seguro, um homem que -elas sonham, do alto de seus saltos e de seus cargos- seja capaz de apaziguar seus anseios, aplacar suas angústias, um tipo sereno e calado, enfim, nada a ver com o sujeito que, depois do segundo uísque, com as pernas flexionadas e as costas tombadas para trás, chacoalha a calva como se balançasse a cabeleira do Slash, contraindo os dedos convulsivamente, emulando as primeiras notas de "Sweet Child O' Mine".

Lembro vagamente de quando soube que vivia em pecado. Foi em algum momento entre o último boletim e o primeiro holerite. Numa mesa de bar, quatro ou cinco garotas listavam as maiores heresias da condição masculina, e lá estava ela, a guitarrinha, empatada com a pochete, o palito de dente, o moletom e a exibição do cofrinho na troca de pneus. Eu, que sempre fui um fraco, que, desde o surgimento dos primeiros hormônios, pendurados nos ralos pelos do buço, sempre fiz o que pude para agradar às mulheres, para conseguir sua atenção, sua admiração e, se possível, seus carinhos, acatei essas arbitrárias interdições. Reprimi o George Harrison no backstage de meu ser e ali o deixei -até o último sábado.

Acho que tem a ver com esta cômoda idade: 30 e poucos. Ainda temos o vigor da juventude -o vigor necessário para solar uma guitarra imaginária-, mas já deixamos pra trás o pudor da adolescência -pudor de contrariar as diretrizes do grupo, de não se encaixar na moldura da época. Até os 29 você ainda tem esperanças de se tornar outra pessoa. Depois dos 30, você simplesmente aceita ser quem é, relaxa e goza. E não me olhe assim, meu amor: eu podia estar roubando, matando, podia estar de pochete, de moletom, palitando os dentes no casamento da Renatinha; tô só aproveitando a vida, enquanto é tempo, "while my [air] guitar gently weeps".

antonioprata.folha@uol.com.br

@antonioprata

AMANHÃ EM COTIDIANO
Pasquale Cipro Neto

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