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Pasquale Cipro Neto

"Os pecados são todos meus"

Cabeças engessadas, formadas pela ditadura estreita do literal estrito, sofrem para perceber...

GILBERTO PASSOS Gil Moreira acaba de completar 70 anos. Filho de médico e de professora, formou-se em administração de empresas na Universidade Federal da Bahia. Trabalhou na alfândega, na Bahia, e na Gessy Lever, em São Paulo. Um belo dia, graças ao bom Deus, largou a gravata, o paletó, a pastinha etc. e pôs os pés, as mãos, a mente, a alma e o coração na música, na poesia, na arte.

A cultura brasileira moderna deve muito a Gilberto Gil. A língua portuguesa deve muito a Gilberto Gil. Eu poderia escrever textos e textos sobre verdadeiros achados poéticos de Gil, em muitas das suas belíssimas canções, mas, como o espaço é limitado, concentro este texto em alguns de seus versos.

Começo com "Metáfora", verdadeira aula magna, que parte da prática da metalinguagem: "Uma lata existe para conter algo / Mas quando o poeta diz: 'Lata' / Pode estar querendo dizer o incontível". Sobre a elaboração dessa canção, Gil diz que "queria falar do significado da poesia, poetar o poetar". E como falou o Mestre baiano! Depois de "explicar" o sentido literal de "lata" ("existe para conter algo"), a letra de Gil diz que, na linguagem poética, a lata (recipiente) pode deixar de ser o recipiente para passar a ser o conteúdo que recipiente algum pode conter ("o incontível").

E a letra continua, cortante: "Por isso, não se meta a exigir do poeta / Que determine o conteúdo em sua lata / Na lata do poeta tudonada cabe / Pois ao poeta cabe fazer / Com que na lata venha caber / O incabível". Para muita gente, é difícil entender o que dizem esses versos da letra de Gil justamente porque para essas pessoas é difícil entender algo que não seja pau, pau, pedra, pedra. Para muitos, o auge desse limite está em "tudonada cabe" ("Como assim? Existe a palavra 'tudonada'?" -pobre poeta, pobre poesia!)

Cabeças engessadas, formadas pela ditadura estreita do literal estrito, sofrem para perceber a beleza de uma imagem poética, tão necessárias (a beleza e a imagem) para que a vida flua, para que a percepção se faça, para que o entendimento e a compreensão se concretizem. Pois a essência do que diz Gil nesses versos está justamente na ideia de que cabe ao poeta (ao artista) fazer o anormal, o estranho, o incomum, ou seja, cabe-lhe fazer o que não foi feito, dizer o que não foi dito ou talvez já tenha sido dito, mas de um jeito inaudito.

Uma das canções de Gil que mais me comovem é "Drão" (apelido de Sandra, com quem Gil foi casado). Com imagens de rara beleza ("Drão / O amor da gente é como um grão / Uma semente de ilusão / Tem que morrer pra germinar"), a letra é uma verdadeira pletora de talento e de competência linguístico-literária, cujo auge, para mim, ocorre nestes versos: "Drão / Os meninos são todos sãos / Os pecados são todos meus". Como se já não bastasse a bela sequência "são todos sãos", Gil se vale do difícil e expressivo recurso da ruptura do paralelismo ao empregar como sujeito de "são" primeiro um substantivo concreto ("meninos") e depois um abstrato ("pecados") e ao terminar um verso com um adjetivo ("sãos") e outro com um pronome ("meus"). Maravilha pura!

E viva Gilberto Gil! É isso.

inculta@uol.com.br

AMANHÃ EM COTIDIANO
Barbara Gancia

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